O patrono da Gazeta Mercantil, Dr. Herbert Levy, era pontual. Apoiado na mesma bengala que o acompanhou nos últimos dez anos de vida, foi o primeiro convidado a chegar ao evento que organizávamos em Campinas para lançamento de um guia de cultura e lazer dos municípios que margeiam as rodovias Bandeirantes e Anhanguera.
Eu dirigia há cinco meses a URN - Unidade Regional de Negócios de Campinas (SP) e já fora informado que Herbert Levy tinha um carinho especial para com o interior paulista de onde saíram os votos que o elegeram deputado federal por vários mandatos...
Recebi-o, acomodei-o numa poltrona à beira da piscina do hotel Royal Palm Plaza. Ainda envolvido com os preparativos do evento, não tive como dar-lhe atenção, tarefa que repassei a amigos, diretores do jornal em São Paulo, seus velhos conhecidos.
Assim que me vi livre das preocupações com o evento, aproximei-me dele em tempo de presenciar um diálogo memorável:
- Retornamos ainda ontem do Nordeste onde lançamos três jornais regionais, informava-lhe um dos diretores da sede, em São Paulo.
- Três jornais regionais!!?? Mas que maravilha! Esse meu filho Luiz Fernando é um grande empreendedor, um empresário com uma visão extraordinária...
- E tem mais, dr. Herbert: no próximo mês, vamos lançar mais três jornais regionais aqui, no interior de São Paulo, disse-lhe o mesmo interlocutor, certamente empolgado pela reação ao informe sobre as iniciativas do Nordeste.
- Mais três??!! Escuta, não é muito não!?
Falecido em janeiro de 2002, o dr. Herbert não teve o desgosto de ver o filho entregar sua empresa, já destroçada, ao salafrário Nelson Tanure... E nem chorar pela última edição do jornal (junho de 2009) que ele fundara no longínquo 1922.
Mas aquele diálogo nas bordas da piscina do Royal Palm Plaza num dia qualquer de setembro de 1998, além de ser premonitório, foi também uma síntese primorosa de tudo o que aconteceria com o maior jornal de economia e negócios da América Latina na primeira década do Novo Milênio...
Se fosse possível encontrar-me com ele, hoje, eu lhe diria: “Foi muito sim dr. Herbert... E como! Seu filho empreendedor e de visão extraordinária quis implementar em dois ou três anos um plano estratégico que o bom senso recomendaria execução gradual em 10 ou 12 anos”.
Nenhuma empresa do mundo teria resistido, por mais sólida que fosse, a tanta ousadia, açodamento e irresponsabilidade...o culpado pelo imenso desastre que se abateu sobre a Gazeta Mercantil, matando-a, foi um homem só e se chama Luiz Fernando Ferreira Levy, falecido em Florianópolis (SC), de causas naturais, aos 72 anos (e não 77, como foi divulgado), na primeira semana de outubro de 2017...
O plano estratégico que poderia ter levado o jornal Gazeta Mercantil a ser o maior diário de economia e negócios das Américas era consistente e funcionava, como eu mesmo consegui demonstrar com as operações da URN de Campinas !
(Pretendo contar a história dessa comprovação no próximo capítulo desta série; por ora, detalharei o plano estratégico e a ousadia e a irresponsabilidade de sua desastrada implementação!)
MALDITO ANO 2000
O ano da virada do século – 2000 – foi o melhor ano econômico da história da Gazeta Mercantil! Antes estacionada na casa dos 150/160 milhões/ano, em 2000 as receitas ultrapassaram - e muito! – a casa dos 200 milhões!
Tornou-se assim um ano maldito, pois foi graças a esse desempenho que Levy afundou o pé no acelerador na implementação de seu plano estratégico, então acrescido da entrada do jornal em televisão ! Foi a chamada “acelerada fatal”!
Já era pura megalomania, mas Levy decidiu enfiar o jornal de cabeça na TV Gazeta negociando com os diretores da Fundação Casper Líbero, detentora do canal com penetração razoável em São Paulo: “Precisamos aproveitar as benesses da homonimia”, justificava sem detalhar os termos do contrato que certamente impunha ao jornal mais um ônus insuportável!
Com ou sem talento para TV, jornalistas do impresso passaram a ocupar várias horas de vídeo com uma programação improvisada, sem nenhum planejamento!
MAPA PONTILHADO
Nido Meirelles, o diretor de circulação, costumava dizer aos diretores regionais:
- Querem ver o Luiz Fernando feliz, mostrem pra ele o mapa do Brasil salpicado de unidades da Gazeta Mercantil?!
E era verdade! Em seus delírios expansionistas, nada animava mais o condutor do projeto que o convite para inaugurar uma nova unidade, para lançar mais um jornal regional ou apenas para participar de um evento que simbolizasse iniciativas e ações estratégicas...
O plano estratégico era feito de quatro pontos bem demarcados:
1)- Ocupação horizontal do Brasil com implantação de URNs em todos os mercados dinâmicos, do Oiapoque ao Chuí, literalmente...Para cuidar do Rio Grande do Sul, nomeou o dinâmico Hélio Gama; pra cuidar, lá em cima, do Pará, nomeou a experiente Cíntia Sasse; Guilherme Pena foi cuidar do Triângulo mineiro, território sensível por que era ali que, no município de Romaria, Levy tinha a fazenda onde enfiou, segundo me revelou um empresário de Campinas, alguns milhões dos recursos do jornal....Em dois anos, nasceram nada menos de 20 unidades da Gazeta, quer houvesse recursos para tanto ou não...
2)- Ocupação vertical, de todos os mercados dinâmicos, através dos jornais regionais...Ele mesmo definia: “O jornal nacional traz os acontecimentos de economia e negócios do país e do mundo; e o jornal regional – na verdade um caderno de circulação local encartado no jornal-mãe – traz o noticiário dos municípios e deve servir de instrumento para penetração da Gazeta nas comunidades, verticalmente”.
3)- Descentralização da planta gráfica...A Gazeta Mercantil foi pioneira no deslocamento da impressão do jornal para fora da cidade onde estava localizada a planta-matriz (SP). No início, os arquivos do jornal, já diagramado e pronto para impressão, eram transmitidos por um sofisticado sistema a laser...Levy pegou os primórdios do alargamento das bandas de internet e deu como missão aos diretores regionais a viabilização de acordos com gráficas locais que permitiriam a impressão local. ”O leitor da Gazeta em Belém do Pará ou em Manaus vai receber o jornal no mesmo horário em que o jornal é entregue em São Paulo”, orgulhava-se Levy...
4)- Todas as unidades regionais têm de ser autossuficientes, ou seja, devem faturar o suficiente pra pagar seus gastos locais e bancar os gastos com as operações do jornal nacional...essa era a meta e os diretores regionais tinham de pensar em estratégias que permitissem alcançá-la no menor prazo possível...Preocupado com o tema, Levy começara a mandar alguns diretores regionais até para o exterior com o objetivo de qualificá-los em gestão....
OUSADIA CEGA E CARÁTER GELATINOSO
Com tantas extravagâncias, o caixa da empresa gemia; mas o condutor não era de se importar com estouros do orçamento. Uma vez, num encontro de diretores e editores do jornal em Uberlândia, enquanto fazia xixi no banheiro do hotel, foi informado que as contratações que ele acabara de autorizar, fariam explodir o orçamento da empresa e ele reagiu: “Xiii! O financeiro vai comer meu rabo!”
Financeiro e RH tentavam barrar o festival de contratações pois enxergavam com clareza que havia um desencontro feérico entre o ritmo da expansão e o caixa, mas Levy foi implacável ! Em novo encontro das lideranças em Vitória, no Espírito Santo, anunciou a demissão das pessoas que tentavam retardar a implementação de seu plano e foi aplaudido de pé pela plateia que incluía os diretores regionais!
A irresponsabilidade não era tudo! Luiz Fernando Ferreira Levy levara para o comando da empresa suas duas compulsões: a de não pagar o que deve e a de trair os amigos, não importava o que haviam feito por ele ou por sua empresa...
Não pagava credores, não pagava nenhuma fatura que viesse do governo e costumava dizer que o governo é que financiaria a expansão da Gazeta... Não cumpriu nenhum dos acordos firmados com as instituições que socorreram a Gazeta (Fundos de Pensão, Bofa, entre outras). Nos últimos tempos, a Gazeta só recolheu o FGTS, de seus empregados de salários maiores, do ano de 2000...
Era também um traidor inveterado... Traiu a todas as pessoas que o ajudaram – Cláudio Lachini, Mário de Almeida, Roberto Muller, Mathias Molina, Delmo Moreira e tantos outros...Nunca o vi preocupado com os dramas que a sua irresponsabilidade provocou... Soube há pouco tempo que um dos seus mais diletos amigos atirou-se do quinto andar de um prédio em São Paulo; conheço inúmeras outras histórias de sofrimento causado pela falência da Gazeta Mercantil, entre as quais está a do vendedor Alexandre Catani, de Campinas, que teve sua vida completamente desestruturada com a perda da casa, a perda da mulher, a perda da auto-estima... Só recentemente Catani conseguiu emergir da profunda depressão...foi o vendedor mais criativo com quem já trabalhei...
O saldo de caixa do ano 2000 foi rapidamente consumido pelo tresloucado plano de TV. Tudo indicava, pelo desempenho da receita no primeiro semestre, que 2001 seria tão bom quanto o ano anterior... A sucessão de crises ocorridas a contar de junho – crise do Apagão, crise da Argentina, 11 de setembro – transformou a Gazeta Mercantil em espécie de borboleta perdida em meio à tempestade.
Tinha mesmo de sucumbir...
Pq vc não monta um livro contando as entranhas da GM. Apesar de quase 8 anos na casa, não tinha certeza mas, imaginava metade do q vc contou.
ResponderExcluirObrigado, Augusta....tenho muita coisa escrita, mas nunca me animei em publicar...quem sabe agora, animado pela repercussão destes meus artigos, eu não me anime, né ? beijo
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