A cena é patética: ajoelhado sobre o
chão de terra arada, Santo (Domingos Montagner), o presidente da cooperativa de
pequenos agricultores nas margens do rio São Francisco, pega punhados do solo
com as duas mãos e, de braços abertos, solta-os devagar. Sua filha, Olívia, (Giullia Buscacio) se
aproxima e pergunta, espantada:
- O que o senhor está fazendo aí, Pai?
- Quero ouvir o que a terra tem pra me
dizer, filha...
Benedito Ruy Barbosa, o autor de Velho Chico,
novela das nove da Globo, deve
desconhecer que não é assim que as coisas funcionam na prática; a terra não fala no atacado com ninguém que a
cultive; ela fala no varejinho do dia a dia; ela fala a cada plantio, a cada
colheita, a cada processo de comercialização. Fala pelo sereno, pela fase da
lua, pela chuva, pela estiagem. A terra fala, fala e fala!
Sua fala ajuda os indígenas da Amazônia
a domesticar as plantas que tiram, selvagens, da floresta; ajuda no desenvolvimento de novas práticas de
manejo do solo, no desenvolvimento de sementes mais produtivas e mais
resistentes a pragas e a intempéries.
A soma desse diálogo resulta no que é
chamado de agri-cultura. Agricultores que não conseguem ouvir o
que a terra diz, com a freqüência que a terra diz, não são agricultores, são
meros extrativistas.
É a cultura que orienta, armazena e
transfere conhecimentos para grandes ou pequenas mudanças no jeito de plantar,
no jeito de colher, no jeito de vender os produtos agrícolas. E os extrativistas
não criam cultura, apenas exaurem todo e qualquer nutriente da terra até a
levarem à aridez e à exaustão.
Aprendi isso há mais de trinta anos com
os líderes da comunidade japonesa de Guaraçaí (SP), responsáveis pela
introdução do bicho da seda no município para conter, com sucesso absoluto, o
avanço da pecuária extensiva sobre as pequenas propriedades. A seda substituiu
com inúmeras vantagens o gado de corte.
Isto posto, torna-se necessária a
pergunta: por que Ruy Barbosa introduziu aquela cena tão esdrúxula na trama
de Velho Chico?
Ainda não se pode dizer com certeza, mas
presume-se que o autor prepara uma mudança de fundo no panorama agrícola da
região onde pequenos agricultores cooperativados estão em conflito permanente
com o latifundiário, Coronel Saruê (Antônio Fagundes).
Velho Chico deve passar para a história
da teledramaturgia brasileira como símbolo de retrocesso e atraso.
Agora mesmo assistimos a mais uma grave
heresia: o genro do coronel Saruê, deputado federal Carlos Eduardo (Marcelo Serrado), é
enviado a Brasília pelo sogro para reunir-se com a bancada ruralista para
organizar a reação ao novo código florestal e às leis ambientais.
A era do coronelismo já passou e a
bancada ruralista não deve ser vista como inimiga dos avanços ambientais. Deve
ser vista como aliada para mudanças e avanços em tudo que envolva o
agronegócio.
Eu estava na sede da Sociedade Rural
Brasileira, em São Paulo, como diretor da Agência Estado e Publisher de um novo
produto informativo para agricultores, no dia em que o governo de Fernando Henrique
Cardoso lançou as normas para recadastramento das propriedades rurais.
A
diretoria da entidade foi convocada às pressas para analisar o texto que o fax
vomitava sem parar. O primeiro contato com o texto que chegava de Brasília
causou estupefação! O novo marco do cadastramento tinha erros grosseiros de
conceitos e sua aplicação era simplesmente inviável.
Envergonhado, o governo teve de recuar.
A inviabilidade do projeto era previsível: foi escrito por tecnocratas em Brasília
e sem uma só consulta a entidades do setor.
MAIS
HERESIAS
O neto do Coronel Saruê, Miguel (Gabriel
Leone), encontra-se com a filha de Santo, Olívia (Giullia Buscacio), e propõe a
“agricultura sintrópica” como grande alternativa para a recuperação do solo e
preservação ambiental das extensas áreas que margeiam o rio São Francisco,
degradado que foi por “práticas irracionais”.
Miguel chegou há pouco tempo da França
onde foi estudar e se preparar para assumir o “império do avô”, localizado na
cidade baiana de Grotas.
Não será por mera coincidência que o
grande e único experimento com a tal agricultura sintrópica no Brasil esteja no sul da Bahia: uma área de cerca de 500 hectares, com
o nome de Fazenda Fugidos da Seca e hoje conhecida por Fazenda Olhos D’água.
A agricultura sintrópica é um invento do
suíço Enst Gots, que encontrou nessa área da Bahia a oportunidade de colocar
seus experimentos acadêmicos em prática.
Veja o que diz sobre Ernst Gots a
jornalista e ambientalista Dayana Andrade:
“Gots chega ao Brasil
em 1982 e, em 1984, fixa-se numa fazenda no sul da Bahia, de aproximadamente
500 hectares tornados improdutivos devido às práticas de corte de madeira,
repetidos ciclos de cultivo de mandioca nas encostas dos morros, criação de
suínos nas baixadas e formação de pastagens por meio de fogo ao longo das
margens da estrada que corta a fazenda. Ali, Gots continuaria o desenvolvimento
obsessivo de seus experimentos em Sistemas Agroflorestais Sucessionais,
alcançando alta produtividade em grande variedade de espécies vegetais, com
destaque para o cacau e a banana. A Mata Atlântica ressurgiu na área, com todas
as suas características de flora e fauna. Hoje são cerca de 410 hectares de
área reflorestada, dos quais 350 foram transformados em RPPN, além de 120
hectares de Reserva Legal. Cerca de 14 nascentes ressurgiram na fazenda ”.
Ainda é cedo para dizer como o novo
“modelo agrícola” surgirá na trama de Velho Chico, mas já é possível prever,
pela introdução em curso, que os telespectadores serão brindados com um
festival de bobagens de alta audiência.
Eu conheci a fruticultura irrigada das
margens do São Francisco. Viajava como jornalista integrando o grupo de
editores e diretores da Gazeta Mercantil (jornal fechado em 2007).
Falamos com inúmeros produtores,
percorremos pomares e parreirais e não vimos nada das “práticas degradantes”
que Velho Chico tenta mostrar como marca da agricultura que ocupa a região.
Quem quiser saber o que acontece
realmente com a agricultura da região deve ler recente artigo do geógrafo e
pesquisador Evaristo Miranda (procurar por “Velho Chico” na página pessoal de
Evaristo Miranda no Facebook).
No artigo, Evaristo diz: “A natureza não tem mais como salvar o rio.
Ele está nas mãos de quem vive nas cidades, sobretudo no Nordeste. Sertanejos,
irrigantes, agricultores e pescadores são mais vítimas do que causadores de
problemas à vida do rio. Não há como compará-los à dimensão dos problemas
ambientais criados por quem implantou barragens e se beneficia da geração de
energia elétrica no mundo urbano”.
Voltando à viagem que fiz à área
irrigada das margens do São Francisco, vimos ali pequenos e grandes produtores conscientes
de suas responsabilidades com o meio-ambiente e devidamente informados sobre as
exigências sanitárias rigorosas dos importadores de suas frutas, que saem dali
em caminhões e seguem para portos da Bahia, de Pernambuco ou do Ceará. Se
assistem à Velho Chico vão se sentir ofendidos.
Miguel, o neto de Saruê, fala ainda de
sua indignação em perceber que os agricultores,
pequenos ou grandes, “só pensam em lucro, em lucro, ninguém olha para o
meio ambiente”. O telespectador mais
atilado começa a imaginar que ele mentiu ao avô ao dizer que iria estudar na
França, pois foi, na verdade, aprender o que diz saber na Venezuela ou em outro
país bolivariano qualquer.
Mal sabe ele que se não for impulsionado
pelo lucro fracassará antes de começar o seu modelo de agricultura sintrópica,
a menos que este seja salvo pela imaginação demagógica de um novelista
ignorante. É o que deve acontecer!
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Precisamos expulsar a Samarco da mineração brasileira. Assine o abaixo-assinado pelo link:
Precisamos expulsar a Samarco da mineração brasileira. Assine o abaixo-assinado pelo link:
(Coronel Saruê abraça o neto Miguel)
(Ernst Gots, inventor da agricultura sintrópica, em suas fazenda Olhos
D`água, sul da Bahia)
(Fruticultura irrigada nas margens do São Francisco)
(Cãozinho perdido na lama da Samarco. Desastre de Mariana)
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