17/11/2015

A morte de um amigo

        Havia uma cobra em seu caminho; em seu caminho havia uma cobra. Terrivelmente peçonhenta. Negou-lhe qualquer chance de escapar.
        Falo de meu cachorro querido, um mestiço labrador que desapareceu das nossas vidas para sempre. Já faz uma semana, mas o tempo tem passado tão doído que a impressão é que tudo acaba de acontecer.
        Na última vez que o vi, ele entrava furtivamente em casa, caminhando feito uma pluma na esperança de não ser percebido. Não teve sorte. Minha mulher, Susana, o viu e o pôs para fora não lhe dando tempo, como sempre fazia, de se aninhar aos pés da minha cadeira de rodas para tirar uma soneca, perto de mim, perto de gente. Estar perto dos humanos – suponho – era a coisa que ele mais gostava, depois de sair para a rua.
        Tenho mais três cães em casa, mas nenhum é como ele, afetuoso, sensível, insubstituível. Moro numa pequena chácara, em terreno um tanto inclinado, ao fundo do qual construí uma cancha de bocha, o meu esporte preferido em meus tempos de andante; a cancha anda meio abandonada, por razões óbvias.
        Posto para fora de casa, deve ter descido à procura de um buraco na cerca para escapar para a rua; passou pela cancha de bocha onde estava à sua espera uma serpente. Foi encontrado morto no dia seguinte pelo meu filho caçula, Ives.
        Dadinho era seu nome; deixou para trás um mar de recordações e de tristeza; sua foto mais expressiva está no perfil do Eder, meu terceiro filho, no Facebook: ele aparece lambendo o rosto do Eder, como se espargisse afeto; era bem o seu estilo.
        Já contei sua história numa antiga crônica aqui em meu blog. Falta detalhar um pouco mais de que são feitas minhas lembranças e que me enchem os olhos d’água várias vezes ao dia.
        Lembro-me de Edilene, minha primeira enfermeira, contratada pelos filhos para cuidar de mim tão logo deixei o hospital. Edilene, dona de um delicioso sotaque mineiro, o chamava de cachorrinho e permitia que ele entrasse em meu quarto e ali permanecesse por longo tempo, dormindo. Não o via, mas sentia sua presença pela respiração. E ela me fazia bem.
        Mais tarde, quando eu já me movimentava de cadeira de rodas pela casa, sempre que eu saia para um pequeno pátio adjacente à cozinha, ele vinha ao meu encontro, feliz da vida, trazendo na boca algum objeto que apanhava do chão – um tapete, uma garrafa pet, um pedaço de pau – e me oferecia uma das pontas para eu segurar; media forças; puxava de lá e me obrigava sempre a puxar de cá.
        Depois, deitava a meia distância e ficava me olhando, não sei se para me vigiar ou para tentar entender minha nova condição; talvez se compadecesse, não sei; talvez me vigiasse, também não sei; talvez por um misto das duas coisas, talvez...
        Uma vez, não faz muito tempo, Combosa, uma cadela grandalhona e desajeitada, aproximou-se de mim e começou a por as patas dianteiras em meu colo; o gesto, carinhoso, me incomodava e eu gritava pedindo para ela parar; mas ela não parava. De repente,  Dadinho entrou em cena para me livrar do carinho tão inconveniente, avançou sobre a Combosa, fazendo-a a parar com a brincadeira, nunca mais repetida.
        Há menos de 20 dias Dadinho escapou para a rua e ficou desaparecido por quase uma semana.  Recorremos à Internet; minha nora, Silvia, imprimiu um pequeno cartaz que espalhamos pela cidade; o telefone tocava várias vezes ao dia e a sensação é que ele havia se multiplicado em vários cães com suas características. Parecia estar em toda parte.
        Quando já o dávamos por perdido, eis que ele aparece, na rua, em frente de casa, em meio a um pequeno grupo da cachorros; Ives saía de carro, o viu e o trouxe de volta prendendo-o no canil. Tinha alguns ferimentos no focinho e muitos carrapatos.
Foram os carrapatos, aliás, que decretaram sua sentença de morte.         Um deles passou para Susana e ela começou a combater com mais energia sua presença em casa. As portas nunca foram uma barreira para  Dadinho: ele sempre as abria dependurando-se nas maçanetas.
        Pensei em deter Susana na última expulsão; fazer prevalecer minha autoridade de dono da casa. Lembrei-me dos carrapatos e fiquei imobilizado. Ela tinha razão. Carrapato, aqui  na nossa região, pode transmitir febre maculosa, doença com alto grau de letalidade.



3 comentários:

  1. A MORTE DE UM AMIGO - Gostaria de idêntica mensagem, endereçada a um amigo gente. Sei que os amigos "gente", são amorosos e amam. Todavia, ninguém consegue tantos predicados como os de um cão. Em cada detalhe desta vida, mais embaraçados ficamos, diante de tantos mistérios. Como é que um simples animal, tem mais capacidade do que o homem de agasalhar tanta demonstração de amor e carinho. É impressionante !!! Mauro Martins.

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    1. Maurinho, nem penso nisso, pois sinto que talvez eu vá primeiro. Não vou me habituar à esta vida de cadeirante e às dores de cadeirante.

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  2. De Mauro Martins ao Dirceu Pio; Cadeirante ou não, a vida continua incólume, desde que as faculdades mentais continuem em plena normalidade, como soe acontecer. Se antes do fato vc era útil ao semelhante, agora, talvez pela lucidez aumentada, vc seja mais útil ainda. Deus gosta. Só não gosta se desistirmos com orgulho e impaciência, perdendo a esperança no AMANHÃ.

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