23/09/2015

O papel na guilhotina

Dirceu Martins Pio - artigo publicado em 16-abril-2013 no Observatório da Imprensa, reaproveitado agora por ser ainda muito atual:


        A crença na sobrevivência do papel como meio para transporte de informação caiu no fundo do poço. Devem existir muitos donos de jornal, inclusive, que não acreditam mais nela. O assunto já pode ser trazido para uma adaptação da lei de Murphy: se ninguém mais acredita que algo pode dar certo, com certeza não dará certo. Temos mais é que nos preparar para as perdas que advirão com o fim – adotemos um nome genérico – da imprensa.
        Os detratores do papel parecem estar certos. Quem determina a sobrevivência ou a morte de um produto ou de um serviço é, em última instância, o consumidor ou, digamos assim, quem paga pelo benefício. Nem sempre ele é racional ou usa a balança para pesar perdas e ganhos. Pensa mais nos ganhos – ainda que ilusórios – e faz a substituição. Que se dane o mundo porque eu não me chamo Raimundo.
        Vejam o que fizeram com os cinemas (refiro-me às salas de cinema, os locais físicos onde comparecíamos para ver filmes): embora comecem a voltar aqui e ali, ilhados em centros de comércio ou shopping centers, como queiram, foram de uma vez simplesmente destruídos pela televisão e seus VTs, CDs e DVDs. E o massacre continuou com as cinematecas da internet. E isto sem que tivessem inventado algo que nos proporcionasse, ao menos de longe, a sensação fascinante de ver um filme na tela grande e com a sonorização de uma sala de cinema. Era como se estivéssemos sentados no topo do mundo e em condições de acompanhar uma história, um drama, uma aventura ou uma comédia, que se desenrolava em nossa frente, como se atores e atrizes quisessem nos reverenciar. A sala de cinema era puro deslumbramento.
        Vemos filmes hoje em ambientes domésticos, em telas menores, com som de qualidade relativa, submetidos às interferências de crianças, às vezes de cães e gatos, ou dos mais velhos que cismam de fazer piadas diante das cenas picantes ou densas. Isso também é cinema? É difícil admitir que seja, mas é. Tem também os seus poucos atrativos.
        Eu já não consigo defender o papel a meus interlocutores de rotina, amigos, jornalistas, filhos, parentes próximos ou distantes. Ninguém mais me permite. Nem me deixam falar e disparam as críticas impiedosas de sempre: “Suja as mãos; a internet tem tudo; a qualidade dos jornais e revistas tem caído como um viaduto.” E por aí vai… O jornalista Luciano Martins Costa, em seu comentário radiofônico reproduzido em texto no Observatório de Imprensa, deu o tom do pessimismo que parece ser endêmico no planeta: “O mundo das grandes tiragens de papel ficou para trás: hoje, uma venda real de 200 mil exemplares sustenta a ilusão de que jornais têm valor como mídia publicitária e as agências de publicidade são cúmplices nessa farsa, porque o desmanche do modelo também torna sem sentido seu negócio tradicional”.
        Não consigo dizer que eu também vejo o problema assim. O papel preserva uma grande parte de sua carga publicitária porque continua a ser eficaz na venda de produtos ou mesmo no posicionamento de marcas e empresas, através da publicidade institucional ou legal. Não fosse assim, a web bastaria para a venda de imóveis, por exemplo. As corretoras, que aproveitam mal a eficácia da web, ainda dependem muito dos jornais para alcançar grande parte de seus resultados.
        Mal sabem os desesperançados que a maioria das informações organizadas, tratadas, hierarquizadas que encontramos na internet é fornecida pela velha e “desprezível” imprensa. Enquanto o papel estiver de pé, teremos essas informações disponíveis na internet de modo organizado, ainda que tenhamos de pagar por elas a partir de agora. No dia em que o papel desaparecer vão desaparecer também essas informações. Até agora, a web não conseguiu remunerar com adequação o trabalho – dispendioso – de captação, processamento e edição de informações de qualidade. O problema é que os impressos já não conseguem manter a qualidade da captação – os conteúdos enfraquecem.
        O computador aposentou a antiga máquina datilográfica com vantagens extraordinárias. A tecnologia digital de captação de imagens já aposentou grande parte das antigas películas de acetato e introduziu no mundo da fotografia uma flexibilidade de produção e uso que causa espanto. Parece-me evidente que as tecnologias digitais, a despeito de todas as vantagens a ela atribuídas na distribuição de informações, ameaçam aposentar o papel com a preservação de muito menos benefícios.
        O melhor dos mundos na distribuição de informações seria aquele em que o universo digital apenas subsidiasse ou complementasse o papel em seu mister de oferecer à sociedade aquela dose hierarquizada de informações que a rigor todos deveríamos consumir diariamente. Como, ao que parece, a fórmula ideal torna-se a cada dia mais inviável, a previsão dos especialistas, no mundo inteiro, é de que o jornalismo vai piorar muito antes de voltar a melhorar. Talvez o papel possa desaparecer agora para reaparecer lá na frente dentro de novos modelos de negócio, assim como aconteceu com as salas de cinema.
        A internet é um meio que já nasceu sob regime anárquico e sem a menor credibilidade. Já nos habituamos a perguntar: “Isto é verdade ou é coisa da internet?” A credibilidade do papel, seu caráter documental, seu poder de “tornar pública” a informação, vão, evidentemente, desaparecer junto com ele. Também desaparecerá essa enorme flexibilidade de uso – o jornal, você leva para onde quiser e para ler não precisa dispor de tela de computador, de sinal de satélite, de cabo, de energia elétrica, a menos que a pessoa queira ler o jornal à noite.
        Ler uma notícia na tela de um computador é um exercício no mais das vezes cansativo, especialmente para os leitores mais idosos, com vista cansada. Ler o jornal costuma ser um exercício agradável pelo desvendamento que proporciona.
        O jornal agrupa as informações e a web as espalha. É difícil imaginar que a web consiga emular o mesmo senso de hierarquia. Vejo, contudo, que é impossível lutar contra a correnteza que ameaça levar o papel para o bueiro. Rezemos para que os chamados publicadores acordem de sua letargia e tenham tempo de estruturar novos negócios no mundo digital antes de perderem os negócios antigos que foram extraordinariamente lucrativos.

18/09/2015

A história sempre explica

        Ela aplicou uma rasteira e derrubou um homem que carregava uma pequena criança no colo enquanto corria para ingressar, o mais rápido possível, na Hungria; depois chutou com violência várias outras pessoas, inclusive crianças, que haviam acabado de atravessar a fronteira com a Sérvia. Era loira, usava máscara no rosto como se lidasse com pessoas portadoras de doenças infectocontagiosas, tem 40 anos, seu nome é Petra Laszlo, húngara, e estava ali como cinegrafista de uma agência noticiosa da Hungria, da qual, dizem, foi demitida tão logo espalhou-se pelo mundo as imagens de sua “admirável ação”, dia 11 de setembro, na fronteira da Hungria com a Sérvia, hoje cercada por um muro bastante alto e encimado por um rolo de arame farpado.
        Fiquei abismado com as cenas protagonizadas por Petra; o bicho-homem é capaz de se superar a cada dia que passa!
        Aqui no meu canto, realizei uma rápida imersão na história da Hungria para ver se, nela, encontrava alguma explicação para gestos tão obscenos, tanto os gestos de Petra como os gestos do governo húngaro e seu “moderno” muro da vergonha. Não precisei ir muito longe. Encontrei vários episódios e informações interessantes já no século passado!
        A Hungria sempre foi um país bastante belicoso; localiza-se na Europa Central, vive basicamente do turismo e tem alta renda per capita e alto IDH-Índice de Desenvolvimento Humano; já tinha ouvido falar de seus maravilhosos lagos termais e sonhava conhecê-los. Sonhava, não sonho mais; jamais vou querer visitar países que se recusam a acolher refugiados e erguem paredões para impedir a entrada de “despatriados”.
        Curiosamente, a Hungria foi um dos países onde o holocausto, sob comando de Hitler, mais se aprofundou. Em julho de 1941, o governo (Bardossy) deportou da Hungria 40.000 judeus. Como forma de agradar à Alemanha, Bardossy aprovou a Terceira Lei Judaica, que proibia o casamento e relações sexuais com judeus. Estes sofreram perseguições econômicas e políticas durante a administração Kállay, mas o governo protegeu-os da “solução final” (Extermínio Total dos Judeus na Alemanha e nos países ocupados).
        Após a ocupação da Hungria pelos nazistas, começaram as deportações de judeus para campos de concentração na Polônia, supervisionados pelo coronel SS Adolf Eichmann, julgado e enforcado em Israel em 1961. Em maio e junho de 1944, a polícia húngara deportou cerca de 440.000 judeus em mais de 145 trens, a maioria para Auschwitz. No total, mais de 533.000 judeus da Hungria foram mortos durante o Holocausto, bem como dezenas de milhares de ciganos.
        Os judeus sempre estiveram presentes na Hungria, desde os primórdios da Idade Média, e a maior sinagoga da Europa se localiza em Budapeste, a capital do país. Declaram-se judeus hoje apenas 0,1% de toda a população húngara, de um total que se aproxima de 10 milhões.


(De repente, aparece o rosto desnudo de Petra; na cena seguinte, ela entra em ação)

13/09/2015

Brincadeiras e malvadezas da Dilma

        Conheci um empresário que levou sua empresa à falência, rápida, retumbante, por executar em dois anos um plano de desenvolvimento que a sensatez e a prudência recomendavam implementação em 10 ou 15 anos; a pressa e a ousadia destemperada levaram para o buraco e para o sofrimento centenas de pessoas que tiveram de assistir, impávidas, à ruína de um negócio que tinha solidez e futuro próspero se administrado por uma pessoa mais capaz e mais prudente.
        A mesma coisa ocorre hoje com o Brasil; uma presidente incapaz, inexperiente (Dilma), assessorada por pessoas açodadas no Planejamento (Barbosa) e na Fazenda (Levy) decidiram fazer em dois anos ajustes que deveriam ser feitos devagar, ao longo de oito a dez anos. Parece claro que vão matar o doente por excesso de remédio.
        Em cinco anos – contando com maior equilíbrio climático – pode-se reestruturar a matriz energética e recompor tarifas. Em dois anos, buscar a recomposição da tarifa em época de estiagem e outras intempéries, é quase matar a galinha de ovos de ouro – a classe média – que poderia responder pelo crescimento da economia em níveis razoáveis.
        Ministros da Fazenda e do Planejamento mostram-se peritos em tecnocracia e neófitos em política; tanto um (Levy) como o outro (Barbosa) deveriam ser substituídos imediatamente, antes que seja tarde demais.
        Pressa, açodamento, é a marca principal de um governo que parece brincar, sadicamente, com os interesses da sociedade; enviar  para o Congresso um orçamento com déficit de 30 bilhões de reais é brincadeira de mau gosto; e a primeira consequência daninha desse gesto apareceu com sua face dramática – a retirada do grau de investimento pela  Standard & Poors; e não é nada improvável que as demais agências classificatórias de risco imitem a Standard.
        É tudo muito óbvio: primeiro, o governo deveria dar a sua parte no ajuste – cortar ministérios, cargos de confiança, desmobilizar patrimônio, cortar uma montanha de gastos supérfluos, reduzir para menos da metade os cargos de confiança, etc etc etc. Depois, persistindo o déficit, fazer um esforço de repor grande parte do dinheiro roubado da Petrobras, Nuclebras e outras fontes de corrupção. O orçamento do próximo ano, inclusive, deveria ter uma rubrica com previsões seguras do retorno do dinheiro desviado.

      Em seguida, promover, com ajuda do Congresso, ampla reforma tributária para tornar a carga menos onerosa para a classe média e mais pesada para a classe de alto poder aquisitivo. Se todas essas coisas forem feitas com competência e aguçado senso de justiça  veremos que grande parte dos problemas desaparecerá.
          Pior de tudo é a falta de transparência, a tentativa de enganar o público. Exemplo: quem vê as declarações oficiais, vai pensar que a Caixa Econômica voltou a operar com créditos ilimitados no financiamento da casa própria; na prática, o que se vê é um súbito aumento da burocracia para se tomar um crédito e restrições nunca vistas antes.
        O país foi parado a pontapés, e a sociedade onerada por uma política econômica estúpida, desumana, imbecil. Não se pode parar tudo de uma vez: a sensatez recomenda que, ao se fechar uma torneira aqui, outras tantas sejam abertas acolá; é através de um jogo bem pensado e bem concatenado que se avança, sem causar tanto sofrimento e tanto retrocesso.
        Também não há como contar com alguma sensatez e criatividade no combate à inflação a não ser o já velho mecanismo de aumento dos juros pelo Banco Central, juros esses colocados novamente na estratosfera. Gastos governamentais sem controle também são altamente inflacionários!
        O real, pela primeira vez desde o surgimento, em 1993, está sob forte ameaça de destruição. E a equipe econômica se mostra inflexível, dura, com os olhos fixos na dianteira, sem olhar para os lados e muito menos para trás. O país precisava de asa delta à frente da economia e lá puseram dois tratores-esteiras com claro objetivo de moer tudo o que encontrassem pela frente.
         Quem tiver fé, trate de rezar.

(Barbosa, Dilma e Levy, que nova perversidade estariam tramando?)

08/09/2015

Refúgio da crueldade!

        Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, que embalde desde então corre o infinito...  Onde estás, Senhor Deus?... 

        Não há como não lembrar de Castro Alves, em seu memorável “Vozes d’África", ao assistirmos ao drama desses povos que partem em embarcações precárias em busca de vida digna em outro continente; a impressão é que Deus esqueceu-se mesmo dessa gente !
        Aquela imagem do menino sírio encontrado morto na praia  está armazenada na minha alma sem tempo para se apagar. Era tão pequeno o menino, tinha apenas dois anos de vida, e fora arrastado pela família para seguirem ao encontro da morte em mar revolto. Só mesmo o Holocausto ou a Guerra do Vietnã para produzir cenas de tanta crueldade.  Guerras, pobreza, repressão política e religiosa são alguns dos motivos que fazem milhares de pessoas saírem de seus países – Síria, Eritréia, Afeganistão – em busca de uma vida melhor no continente europeu.
        Nilüfer Demir, uma fotógrafa da imprensa turca, fotografava um grupo de imigrantes paquistaneses na praia quando encontrou o corpo sem vida de Alan Kurdi. Ela mesma não soube prever que sua foto provocaria tanta comoção no mundo.
        Refúgio da crueldade, só agora os governos dos países ricos da União Européia começam a ter alguma sensibilidade para perceber o drama desses refugiados; começam a abrir as fronteiras contando cada pessoa que entra em território nacional como se contam animais prontos para abate.
        Não deveria ser assim. Gente não é bicho, gente faz falta, principalmente nesses países velhos, que há muito tempo não crescem mais. E sabem por que não crescem? Porque o consumo não cresce. Sabem por que o consumo não cresce? Porque falta gente para consumir.
        A tese do antropólogo paulista José Almeida Marins Filho é justamente esta: os velhos países do Velho Continente vão um dia ter de “importar” consumidores para resolver seus problemas de estagnação econômica. Deveriam pois receber essas famílias deserdadas por suas pátrias de braços abertos, como quem recebe uma dádiva divina e não como quem recebe uma maldição.

        Talvez a morte do pequeno Alan Kurdi não tenha sido em vão. É provável que o sacrifício de Alan tenha servido para mostrar que as fronteiras não podem ter mais tanta rigidez, a ponto de afastarem das pessoas a compaixão. Viver sem compaixão serve para que? Pergunta que deveria ser respondida também por aqueles que reagem com ódio e virulência contra a presença de haitianos em solo brasileiro, uma estupidez bem casada com a mais torpe das ignomínias.      

(Foto Nilüfer Demir)