31/08/2015

Uma história nada exemplar

        A mídia quase ignorou a concentração em frente ao Instituto Lula, marcada para o mesmo dia – 16/08 – dos protestos nacionais, estes convocados, mais uma vez, pelos movimentos Brasil Livre, Vem pra Rua e Revoltados Online e que reuniram multidões em toda parte, do Oiapoque ao Chuí. A concentração na porta do Instituto, é claro, foi convocada pelo PT e era em desagravo à entidade que teria sofrido alguns ataques dos inimigos do partido, cujo número tem aumentado assustadoramente. Por outro lado, foram, por assim dizer, bem fraquinhas as manifestações convocadas pelo PT para o dia 20/08 em apoio a Dilma, a favor do governo, contra Eduardo Cunha e a favor da Democracia. A piada que corre é que havia nas concentrações petistas, realizadas em 32 cidades, ao todo 120 mil pessoas, segundo os organizadores; 1.200 pessoas, segundo a Polícia Militar e apenas 120 pessoas, segundo o Datafolha. Quem o viu e quem o vê!!!
        Ironia à parte, não deve ser fácil para as lideranças do PT amargar esse quase ostracismo a que o partido começa a ser relegado, inclusive no Nordeste, transformado recentemente em seu reduto eleitoral graças aos programas sociais do tipo Bolsa Família; ruas e praças de cidades como Salvador, Recife, Fortaleza foram incendiadas pelos gritos de Fora Lula! Fora Dilma! e Viva o juiz Sérgio Moro! É a vingança do índio! Ninguém vai conseguir enganar a todos por todo o tempo! Escassearam muito os jabaculês e pixulecos que já levaram multidões para ruas e praças.
        O emagrecimento do PT não surpreende nenhum pouco a quem, como eu, acompanhou a história do partido desde o seu surgimento, alvissareiro, diga-se de passagem, dentro do movimento sindical do ABC Paulista; hoje de volta à cadeia por envolvimento também na operação Lava Jato, Zé Dirceu mandava e desmandava no  PT em parceria com o poderoso chefão, Luiz Ignácio Lula da Silva. Nunca ninguém na República havia usado a tese maquiavélica – os fins justificam os meios – com o mesmo ardor de Zé Dirceu; encavalado no poder já no primeiro mandato de Lula (2003), como chefe da Casa Civil da presidência da República, ele botava as manguinhas de fora – e que manguinhas! Quando queria expelir alguém do governo, inventava dossiês falsos e abomináveis contra seus detratores. Agia confiante, pois atrás dele viria o PT promovendo benesses para o povo. Assim, seus pecados seriam perdoados.
        Havia um Roberto Jeferson em seu caminho. Ele teve de ser apeado do poder de modo quase humilhante. Digo quase porque sua cara de pau impedia que víssemos o quanto foi humilhado. Ele continuou em marcha – marcha do mal – e foi em frente; condenado pelo Mensalão, do qual foi o mentor, conseguia escapar das grades, dando o drible da vaca nas leis e na justiça; sua segunda prisão veio no bojo da Operação Lava Jato. Enquanto descansava, tirava boas casquinhas da Petrobras.
        Aplaudido de pé nas convenções do partido mesmo proscrito do poder, Zé Dirceu manobrava, manobrava e manobrava; poucas pessoas encarnaram o espírito desse declínio petista tão bem quanto ele; apareceu como intermediário da compra, pelo “empresário” Nelson Tanure, da revista Isto É; o negócio não saiu, mas Zé Dirceu, por alguma razão que a própria razão desconhece, começou a mandar na revista mais que seu dono, Domingos Alzugaray. Eu estava nessa época assessorando, a pedido de amigos, o vice-governador de Santa Catarina, Leonel Pavan, do PSDB.
        Zé Dirceu havia escolhido Leonel Pavan, que na época ocupava um cargo importante na Executiva Nacional tucana, como o inimigo número um do PT, que naquele ano (2010) elegeu Dilma para o seu primeiro mandato; Pavan havia sido prefeito do Balneário Camboriú por três vezes e modernizou e saneou a cidade; construiu com isto a base eleitoral que o levaria ao Senado e posteriormente a vice-governador na chapa vitoriosa de Luiz Henrique da Silveira (PMDB); havia um acordo pelo qual PMDB, PFL (Dem) e PSDB iriam apoiá-lo para governador nas eleições de 2010.
        Estava tudo combinado: Luiz Henrique renunciaria no começo de janeiro, o vice Pavan assumiria como governador e no tempo certo seria lançado candidato da coligação tripartite ao governo estadual; ele se esqueceu que o combinado com políticos é geralmente mais falso que uma nota de 12 dólares; Pavan foi acusado de haver aceitado 100 mil reais de uma distribuidora  de petróleo do Rio de Janeiro para impedir que sua licença catarinense fosse cassada pelo órgão fazendário, por inadimplência tributária.
        A licença foi cassada sem nenhuma influência de Pavan e, pela primeira vez na República, se viu uma empresa pagar por um benefício  que  não recebeu. Pavan levou bordoada de tudo quanto é lado; no fim de 2009 eu fui para Santa Catarina para ajudar a salvar o pobre Pavan das labaredas do inferno. Quando o fogo estava quase extinto, eis que entra em cena o grande ídolo do PT, Zé Dirceu. A revista que ele controlava publica duas páginas de pura “bandalheira” que Pavan havia “cometido” em sua passagem pela Prefeitura do Balneário Camboriú. Foi acusado até de falsificar dólares. Era tudo mentira deslavada, mas que importância isso tem, não é mesmo?
        O incêndio contra Pavan recomeçou então com intensidade maior do que havia iniciado. Luiz Henrique não renunciou em janeiro; foi renunciar meses depois, quando Leonel Pavan já estava quase transformado em cinzas. Assumiu o governo só após haver prometido, em discurso na convenção de seu partido, o PSDB, renunciar a suas pretensões de ser candidato ao cargo que já ocupava.
        Resumo da história: o partido do qual se esperava um jeito mais elegante e honesto de fazer política mostrava suas garras e sua disposição de também chafurdar na lama da imoralidade e da indecência. O mais triste é que ele já havia nascido assim, com esse defeito genético, e nós é que custamos a perceber.

24/08/2015

Tocadores do Lucy (III)

As meninas da T.O. (sigla de Terapia Ocupacional) compensam com carinho e afeto as chicotadas que a vida deu (e às vezes continua a dar) nos cadeirantes internados no Lucy Montoro; vivemos, nós, os cadeirantes, entre a realidade e a depressão; as meninas da T.O. conseguem nos por novamente na realidade e com ânimo para enfrentar o árduo – e muitas vezes dolorido – caminho da reabilitação.
        Na segunda internação, minha T.O. foi a inesquecível Amanda. Devo a ela a quase total recuperação do meu braço direito, paralisado pelo AVC que me atingiu em fins de julho de 2013 durante a cirurgia que fui obrigado a fazer no hospital da UNICAMP para desobstrução das coronárias; não foi apenas a reabilitação do braço; com seu método persuasivo, tenaz, Amanda ampliou bastante também minha independência em relação ao cuidador, seja me passando métodos práticos e eficazes para me vestir, para me alimentar, para tocar a cadeira de rodas, etc.
        Nesta terceira internação, fui contemplado por duas T.O.s do mesmo calibre de Amanda – Kamyla e Tharsila. Kamyla assumiu e três ou quatro dias depois adoeceu (conjuntivite) e sua missão foi repassada a Tharsila. Levarei das duas também ótimas  lembranças.
        Kamyla passou pouco mais de uma semana em casa e retornou ao trabalho em meus últimos dias de internação; teve tempo, contudo, de concluir seu brilhante trabalho. Diria que os dias que passei em companhia de Tharsila foram da mesma forma inesquecíveis – ela tem um jeito doce e suave de se relacionar com seus pacientes. Tem um sorriso encantador.
        Na primeira semana, Tharsila concluiu a avaliação que Kamyla iniciou mas não teve tempo de terminar:
        - Agora, seu Dirceu, o senhor vai-me dizer, numa escala de um a dez, pela importância, as coisas que fazia e hoje não consegue fazer mais.
        Eu mencionei várias coisas, entre as quais a leitura de livros mais volumosos, pois minha mão direita não tem força para sustentá-los pelo tempo necessário; outra dificuldade mencionada foi a de me vestir com a roupa da parte inferior do corpo, calça, meias; Tharsila insistiu por uns dias com a melhora do desempenho do braço direito e Kamyla retornou com disposição redobrada; passou exercícios para melhorar o uso da mão direita, que andava um tanto esquecida e me levava para o quarto, com ajuda da cuidadora, para treinamentos persistentes de colocação de calças e meias; os ganhos de independência foram, mais uma vez, enormes.

        No último dia da internação, Kamyla  entregou-me  um presente que fechou com chave de ouro o tratamento: um suporte de papelão para apoiar os livros mais volumosos como incentivo a que eu retomasse a leitura com a mesma intensidade de antes; ela construiu o invento em casa e suas colegas na  T.O. ficaram encantadas com ele, com certeza não mais que o encantamento de quem o ganhou. Trouxe-o para casa e ainda não o usei. Serve, por enquanto, para eu manter acesa a lembrança de Kamyla com seus olhos grandões e maravilhosos, seu rosto afilado – rosto de princesa.

(Seção de Terapia Ocupacional)

19/08/2015

Tocadores do Lucy Montoro (II)

        Logo na minha primeira internação no Instituto de Reabilitação Lucy Montoro, há quase dois anos, aprendi que não devemos confundir fisioterapeutas com terapeutas ocupacionais, embora sejam, ambos, profissionais especializados  em reabilitação. No meu caso, os fisioterapeutas trabalham mais as pernas e os terapeutas ocupacionais, mãos e braços.
        O primeiro andar do subsolo – no elevador, o famoso “menos um” – é ocupado por ambas as especialidades em salas separadas. No Lucy, não é nada incomum pacientes chegarem ali em cadeira de rodas e saírem sem ela, muitas vezes dando passos lentos mas já dispensando ajuda de equipamentos de apoio – andadores, bengalas ou muletas.
        O paciente precisa estar pronto (músculos que já superaram a inércia da paralisia e readquiriram força necessária para a marcha) para começar a andar. Eu mesmo, que já tenho dois anos de cadeira de rodas, não estou pronto. Ao passar por avaliação pelos fisioterapeutas, identificaram fraqueza dos músculos da bacia de modo que ainda tenho mais três meses de exercícios intensivos para retornar para uma quarta internação.
        Fisioterapia, eu escrevi em crônica neste blog, é uma técnica muito dolorida com objetivo de levar uma pessoa a ficar o mais parecida possível com aquilo que ela já foi. Não há problema, suportarei tudo estoicamente. A dor passou a fazer parte da minha vida nesta nova fase, de todo inesperada.
        Fiquei pouco tempo no Lucy; desta vez, três semanas. Ainda assim eu e a mulher, Susana, minha cuidadora, aprendemos muito. Ali, as lições de vida estão no ar que respiramos.
        Minhas duas fisioterapeutas – Tatiana e Daiana – são exemplares; Logo pela manhã, depois de tomar café no quarto, eu já sabia que descendo pelo elevador seis andares teria um encontro com a baixinha de olhos azuis e sorriso encantador – Tatiana, casada, mãe de um filhinho de três anos, Pedro, muito lindo (ela mostrou-me a foto pelo celular). Fiz-lhe certa vez uma pergunta específica sobre o estágio da minha recuperação e a resposta foi um “banho” de conhecimento da anatomia humana, coisa de profissional  competente que nos deixou – eu e Susana – maravilhados. No intervalo da terapia, brinquei:
        - Tatiana, você chama seu filho de Pedrinho?
        E ela de maneira enérgica:
        - Não! Chamo de Pedro, apenas Pedro.
        Eu insisti:
        - Bom, não tem problema. É porque eu gostaria de ser adotado por você e acho que a incentivaria a chamar-me de Pedrão. Então você teria o Pedrinho e o Pedrão! O que acha?
        Ela riu e a resposta foi desalentadora:
        - Sem condições, eu quase não tenho tempo de cuidar de um, imagine de dois!
        Ela me tratou com objetividade e energia, sem nunca perder a ternura. Soube por suas colegas que ela é muito rigorosa. Eu, de brincadeira, vivia lhe pedindo:
        - Fala pro seu marido me ligar. Quero que ele me dê umas dicas de como lidar com você. Ouvi dizer que você é muito brava, uma verdadeira caninana!
        Ela ria e balançava a cabeça como a querer sugerir que eu não deveria acreditar nessas aleivosias.
        Já Daiana, que me atendia à tarde, é pouco mais descontraída. Sua marca é ouvir seus pacientes com desdobrada atenção. Também fala com propriedade da anatomia humana e demonstra conhecimento profundo de tudo aquilo que faz. Seus exercícios me fizeram descobrir que a dor do alongamento das pernas passa com a persistência.
        Em frente ao salão da fisioterapia fica a famosa sala 15, por onde todos devem passar pelo “condicionamento físico’’. Ali, como costumam dizer os pacientes do Lucy, “o bicho pega”. É o setor mais rigoroso da fisioterapia: pedalar na bicicleta ergométrica por 20 minutos significa pedalar por 20 minutos, não há descanso. Isto tudo seria insuportável para mim, que sempre odiei  exercícios, não fosse o bom humor de Tom, um rapaz simpático, que comanda a atividade de muitos pacientes, inclusive as minhas, na maioria das vezes.
        - 20 minutos sem descanso, vai nessa seu Dirceu, que faz bem- ele diz cheio de sorrisos.
        Seu auxiliar, Jean, rivaliza com ele em simpatia e afeto. A físio tem bicicletas de acentos almofadados e confortáveis; as bicicletas do condicionamento têm o acento duro, bem desconfortável. Aproveito um momento que Tom está próximo de Jean e largo a piada: as bicicletas da físio foram feitas por Deus e estas daqui pelo demônio. Ambos riem sorrisos que exalam simpatia.

         Tom e Jean são negros, demonstração viva do ecletismo racial do Lucy.



(Rede Lucy Montoro é pioneira em uso de robôs na reabilitação) 

14/08/2015

Tocadores do Lucy Montoro (I)

        Nem me lembro mais do nome da enfermeira que fez o primeiro atendimento no meu quarto; sei que era baixinha e simpática. Foi na minha primeira internação, há 18 meses. Ao me transferir da cadeira para a cama, escapei e quase fui ao chão; em pânico, deu um jeito de enfiar-se embaixo de mim para amortecer ou evitar a queda. “Já pensou se o senhor cai? Deus me livre!” – comentou, ainda desconcertada.
        Eu, para aliviar a situação, respondi:

        - Não se preocupe, eu gostei, foi a queda mais macia que já sofri na vida ! Vou até sugerir ao Lucy instituir uma nova terapia com o título de “queda sobre a enfermeira”.

        Foi difícil, mas consegui arrancar dela um primeiro sorriso, o que a tornou ainda mais cativante.
        Nos andares de internação, não são muito raras as quedas de pacientes; ao serem internados, todos ganham uma pulseirinha de um tipo de cor de acordo com o risco de queda (nesta terceira internação, ainda não consegui livrar-me da pulseira vermelha, que indica “alto risco”). Ficou para a próxima ou quem sabe para o finalzinho desta, se tudo correr bem.  Outra medida, diria que disciplinar, é a proibição aos portadores da pulseirinha vermelha  e cuidadores de fazerem, nos primeiros dias da internação, qualquer tipo de transferência sem a presença de um enfermeiro ou enfermeira como observador. A liberação só ocorre após dois ou três dias de observação e após o aval do fisiatra do andar.
        Rosa, Sebastiana, Antônia, Raquel, Ana, Elisângela, Fernanda, Tiago, Gilmar, Lilian, Tatiana, entre tantos outros – o Lucy tem um quadro de enfermeiros, enfermeiras, oficiais administrativos, exemplar. Não importa o horário do dia, da noite ou da madrugada – todos parecem trabalhar com alegria e elevado senso profissional.
        Vejam o caso de Rosa, enfermeira; suas lembranças me perseguem no antes e após o Lucy Montoro. Em casa, ouço sua voz – forte e ao mesmo tempo suave- sempre que vou tomar algum remédio: “Toma muita água, seu Dirceu!“ Graças a ela creio que dupliquei a ingestão de água nos últimos meses e meu organismo parece agradecido. Eu a conheci na segunda internação e confesso que estava ansioso por revê-la nesta. Por sorte, ela atende o sexto andar onde me encontro.
        Outra voz inconfundível é a de Sebastiana, que me acorda às 5h, 30 da manhã com o seu delicioso sotaque mineiro e apreciável bom-humor. “Sei que aqui não pode entrar criança – ela diz – mas eu não vou deixar minha filhinha com ninguém; onde eu vou, ela vem junto”. Ainda sonolento, custei a entender. Ela se referia à menina que está em sua barriga. Sebastiana entrou em julho de 2015 no oitavo mês de gravidez. Daqui mais trinta e poucos dias virá ao mundo sua filhinha, que irá se chamar Yasmin.
        A cada internação, a enfermagem parece melhor, mais comunicativa, mais preparada; nunca fui de acordar muito cedo, mas Elisângela me tira elogios rasgados à elegância e simpatia; sempre de cabelo-loiro bem alinhado, sempre maquiada com sobriedade, até o uniforme lhe cai muito bem. “Como você consegue surgir no meu quarto assim tão elegante às cinco horas da manhã?”- sua resposta é apenas um sorriso que irradia simpatia e beleza.
        Já a conversa com Antônia é sempre uma imersão na cultura do nordeste. Ela é cearense e gosta de falar dos momentos vividos em sua terra-natal. Cita expressões regionais e sabe dizer dos usos e costumes do Ceará. E fala num sotaque suave e gostoso. Lilian, oficial administrativo, fica sempre de cabeça baixa atrás do balcão de enfermagem, espécie de recepção dos andares da internação, ligada na tela do computador. Uma vez surpreendi-a contando a uma amiga, ainda indignada, a história do idoso que a ofendeu no ônibus que a traz todos os dias ao trabalho. Eu a via sempre que passava em frente ao balcão indo ou vindo das sessões de terapia. Brincava com ela – “E o idoso mexeu com você hoje?”. Ela ri um riso gostoso. Foi ela que me surpreendeu contando a uma enfermeira que iria escrever uma crônica em homenagem ao corpo de enfermagem do Lucy.
        - Não se esqueça de mim e do meu idoso nessa sua crônica, hem seu Dirceu? – ela me exortou com simpatia. 
        Lilian trabalha ao lado de Fernanda, outra enfermeira nota dez. Já havia pedido a vários enfermeiros para Ligar para a Net – operadora do sinal de TV do setor de internação – para solicitar a retirada de um selo promocional que atrapalhava muito a visão das imagens; nenhum deles obteve resultado e o selo continuava lá. Foi quando repeti o pedido a Fernanda, que se comprometeu a voltar a falar com a Net. Foi o tempo de retornar ao quarto e ligar a TV: o selo já havia sido retirado.
        Os exemplos de eficácia de enfermeiros, enfermeiras, oficiais administrativos se repetem “ad infinitum”. Como no caso de Gilmar, enfermeiro. Um dia fomos convocados, pacientes e cuidadores, para participar de uma palestra no primeiro andar. Para mim o tema era bem pouco atrativo: doenças sexualmente transmissíveis, AIDS, Herpes, Sífilis, etc. Ao longo da minha carreira de jornalista, colecionei tantas informações sobre o assunto que achava que ninguém poderia me passar alguma novidade. Surpreendi-me. Um dos dois palestrantes era Gilmar, enfermeiro, respondia perguntas com propriedade e vasto conhecimento científico. Foi talvez a palestra mais interessante sobre o assunto que presenciei na vida.


09/08/2015

Lucy Montoro, oásis no deserto da Saúde brasileira

        Como informei em artigo anterior (A Solidão do Cadeirante), estou internado no Instituto Lucy Montoro pela terceira vez. O Lucy - uma das ótimas heranças do PSDB – é um dos centros  mais especializados em reabilitação da América Latina, com diversas unidades espalhadas pelo estado de São Paulo. A unidade para internação, onde estou, fica no Morumbi, a poucos quilômetros de Paraisópolis.
        Almoço todos os dias com o garoto Mateus. Ele tem 18 anos e aos 17 foi vítima, durante uma balada, de uma bala perdida que atingiu-lhe as costas e o deixou paraplégico. Sua cuidadora é a mãe, Maria Betânia, que se reveza no trabalho com a avó, Deída. A família reside na favela de Paraisópolis e é um bom exemplo da face democrática do Lucy, que tem acolhido pacientes de várias faixas de renda, sem distinção e sem necessidade de “cunha” política. O foco é na necessidade de saúde e nas possibilidades de recuperação bem avaliadas por médicos fisiatras (especialistas das doenças que atacam os pacientes com lesões).
        O Lucy é mantido pelo SUS – Sistema Único de Saúde. A terapia de reabilitação intensiva é cara, mas o instituto se parece com um oásis em meio ao caos da saúde no Brasil, onde faltam recursos e sobram necessitados; penso que a inépcia do SUS no Brasil é uma fotografia do fracasso da proposta do Partido dos Trabalhadores - PT, desfigurada pela corrupção sem precedentes na história deste país. Fossem aplicados em saúde, por exemplo, os 19 bilhões de dólares roubados da Petrobras, é bem provável que Lula teria cumprido sua promessa de transformar o SUS em exemplo de qualidade para o mundo.
        O Lucy é muitas vezes a última esperança de recuperação de pessoas com lesões medulares de todo o tipo e toda gravidade; sua clientela não para de crescer num país injusto, assolado pela violência, pelos acidentes de trânsito, pelos acidentes na construção civil, pela má qualidade da saúde pública, que mandou para o Lucy, como exemplo, o ainda jovem Rafael, com grave lesão cerebral. Filho do pequeno empresário Nilton, seu cuidador, Rafael ainda consegue preservar o corpo de atleta, com músculos bem torneados  e avantajados. Deve ter quase um metro e oitenta de altura, 38 anos de idade. 
        Era lutador de tae-kwon-do e apresentou uma isquemia cardíaca, que ele escondeu da esposa e do pai para não ser obrigado a parar de lutar; durante uma luta em São José dos Campos, no Vale do Paraíba (SP), teve uma parada cardíaca; faltou oxigênio na ambulância da Prefeitura que o socorreu; chegou ao hospital em coma profundo e saiu de volta para casa com lesão cerebral, que ainda o mantém semi-paralisado e com grave retardo mental. 
        É a segunda internação de Rafael no Lucy. Sua evolução é notável, embora seu cuidador não o perceba tanto quanto eu. Ele já anda com certa dificuldade, entende quase todas as coisas que lhe falam, diz inúmeras palavras com clareza que melhora a cada dia da internação; é sua segunda internação no Lucy. Estive com ele e o pai na primeira internação, há cerca de 18 meses. Eu fiz uma segunda enquanto ele teve de realizar uma cirurgia  para implante de uma válvula cardíaca.
        O prédio para internações do Lucy fica na rua Jundiatuba, cercado por arranha-céus residenciais. Tem 10 andares, dos quais quatro são de apartamentos para internação; pacientes ficam hospedados, cada qual com seu cuidador, durante três, quatro, seis ou oito semanas, dependendo de cada caso, da evolução do tratamento, dos objetivos fixados por fisiatras, terapeutas, psicólogos, fonoaudiólogos. A assistência ali é completa, tocada por profissionais instalados no topo da pirâmide profissional. Parecem não existir altos e baixos no time de profissionais que faz o Instituto funcionar – todos operam  num altíssimo nível de qualidade.
        Falhas? Impossível não havê-las. Noto alguma pouca deficiência na comunicação médico-paciente, como no meu caso, na segunda internação, quando fui levado para aplicação de fenol na perna direita, sem que me explicassem para que e o que pretendiam com o procedimento. Deu problema: apresentei o que os fisiatras chamam de “choque” no pé e o problema (dor no pé, que se espalha lentamente até atingir vários pontos do corpo) persistiu por quase um ano. Até hoje, 12 meses  após a aplicação, ainda sinto resíduos do problema. Eu deveria ter sido comunicado da finalidade do tratamento e prevenido dos riscos.
        Mas o Instituto reage, a comunicação, hoje, é muito mais esmerada, com a recente implantação de um fisiatra por andar dos quatro andares da internação. O médico que me atendeu no sexto andar, nesta terceira internação, chama-se Artur – é um nissei simpático, dono de grande empatia para com os pacientes. Deve saber que a empatia é a pedra de toque de toda boa comunicação.


(Imagem ilustrativa de um oásis circundado por montanhas de areia)

06/08/2015

O raquitismo da TV aberta (II)

        Quando disse, no artigo anterior, que tem faltado “vontade competitiva” às emissoras que concorrem com a Globo é por observar que nenhuma delas tem sabido aproveitar, com mais apetite, as oportunidades de melhorar a audiência nos raros momentos em que a  líder fraqueja; todas elas, da Record ao SBT, passando por Bandeirantes, aparentam estar  conformadas com a rabeira.
        Na noite que a líder exibe Palmeiras e Asa de Arapiraca, nenhuma das concorrentes decidiu colocar no horário do jogo, horário nobre, alguma atração para fisgar aquele telespectador que zapeou à procura de algo melhor para ver. E com certeza, devem ter sido milhões deles.
        Por favor, não venham dizer que faltam recursos para pensar em algo melhor; nem sempre o problema é falta de recursos; geralmente, tem sido falta de imaginação, de vontade competitiva. Vejam a Bandeirantes: já não está mais atenta ao horário da virada da curva de audiência e retarda a mais não poder a entrada no ar de seu ótimo CQC; mesma coisa faz o SBT com o seu “A Praça é Nossa”, às quintas-feiras.
        O tamanho do break publicitário – muito longo – também tem roubado audiência tanto da Bandeirantes quanto do SBT; não consigo entender porque esses canais não adotam o estilo concorrencial da Globo, que em síntese recomenda mais break e mais curtos. E olha que a Globo tem muito mais contratos publicitários que as demais emissoras.
        Trabalhei, como diretor de jornalismo, numa redezinha regional – quatro emissoras, uma na capital, Curitiba, e três no interior – e descobri, em quase dois anos de trabalho, que é possível incomodar a “líder” com iniciativa simples, basta ter vontade de competir. Minha maior façanha foi a cobertura de um assalto ocorrido em Londrina, com ingredientes sensacionais.
        Nossas emissoras repetiam o sinal da Manchete, com Sede no Rio. Eram pouco mais de 11 horas da manhã e recebo um telefonema do correspondente em Londrina alertando-me para a eclosão de um assalto a uma agência bancária: “Um bando de homens mascarados invadiu a agência e mantém como reféns todas as pessoas que estavam lá dentro, com certeza mais de 200, entre funcionários e clientes”.
        Na mesma hora dei sinal para uma funcionária e pedi para ela ligar para a Embratel e fazer a reserva do único canal de transmissão Londrina-Curitiba por cerca de 10 horas. A reserva foi feita e a estratégia competitiva, assim, foi montada. O canal Londrina-Curitiba era único; a emissora que o reservasse tinha direito exclusivo de uso pelo período da reserva; quebrei a “líder” pela espinha. Em 30 minutos colocamos no ar, em rede nacional, o primeiro flash do assalto. A “líder” conseguiu por no ar seu primeiro flash às 4 horas da tarde; teve de levar suas fitas com cenas do assalto de avião fretado para Curitiba.
        Um amigo estava nesse dia na sala de Armando Nogueira (diretor de jornalismo da “líder” na época) no Rio de Janeiro quando nosso primeiro flash do assalto foi exibido; Armando levou um susto, quase cai da cadeira; fez cobranças cruéis a toda equipe do Paraná, que havia sido imobilizada por um gesto de um jornalista de texto com apenas alguns poucos meses de televisão.
        Os jornalistas que trabalhavam comigo na Manchete eram amigos dos jornalistas da Globo; encontravam-se à noite nos bares de Curitiba e vinham me dizer no dia seguinte que ninguém ali, na “líder”, costumava assistir ao nosso pequeno jornal; reagiam na base do não vi e não gostei. Isto foi até o episódio do assalto. A partir daí todos receberam ordens expressas das chefias que tornavam obrigatório verem os nossos jornais.