Quando eu descobri o Bar do Concórdia, em Valinhos, ele já era um assíduo frequentador do lugar. Tem um jeito engraçado de jogar bocha. Chama a si mesmo de jogador de “design” – ele pronuncia direitinho, “disaine”, pelo aprendizado da vida – e quando solta uma bocha meio torta e é gozado por alguém da plateia, fica irado e protesta:
- Que isso rapaz? Vê se me respeita, eu sou um jogador de disaine.
Um belo dia, quando já havia me afeiçoado a ele, Martins desaparece. Ficamos todos ali na expectativa de revê-lo e nada, nadinha da Silva. Eu reuni alguns amigos mais chegados - Zezé (já falecido, morte terrível, de Alzheimer), Chico Total (também já falecido em consequência da hepatite C), Coringa, Claudio Seleiro e não lembro mais quem e fomos numa comitiva de amigos da bocha à casa de Martins, num bairro afastado de Valinhos; atendeu-nos à porta um dos filhos dele que revelou seu paradeiro depois de insistentes perguntas formuladas pelo amigo-jornalista, este que vos escreve. Foi difícil, mas conseguimos arrancar do garoto, envergonhado, a verdadeira causa do sumiço do nosso companheiro de bocha:
- Meu pai está preso no cadeião de Jundiaí.
Ficamos perplexos e apreensivos. Nervoso, o garoto quase não consegue nos dizer a causa, balbuciou qualquer coisa relacionada a sonegação de impostos. Não demorou para que a perplexidade dos amigos fosse transformada em forte indignação: Martins, nosso companheiro de bocha, fora engaiolado numa cadeia imunda de Jundiaí, porque deixara de recolher impostos para o tesouro estadual de uma firma fechada 20 anos passados em São Caetano do Sul e por força de um punhado de mandados de prisão já prescritos, mas que um juiz revalidou instantaneamente quando foi informado que o “devedor” estava ali, disponível, numa delegacia de Jundiaí. Reparem que escrevi “devedor” entre aspas porque Martins havia dado máquinas de sua firma a um leiloeiro oficial para pagamento do débito mas ele desapareceu com elas assim que as recebeu. Martins, que já havia migrado para Valinhos, não sem antes quitar, centavo a centavo, o seu passivo trabalhista, só a caminho da prisão soube dos desvios de suas máquinas.
Fomos visitá-lo. Dono de uma loja de tintas, Chico levou alguns galões de Suvinil para presentear o amigo; para não ficar na sela junto com dois estupradores Martins contava com a boa vontade da carceragem que o liberava, durante o dia, para pintar as paredes da cadeia. Lá ficou quase um mês, impiedosamente. Saiu depois de pagar 32 mil reais, dos quais eu lhe emprestei 12 mil. Não tinha esse dinheiro disponível, mas saquei no cheque especial. Martins devolveu-me centavo a centavo do dinheiro em poucos dias depois de solto. Alguns amigos me censuraram por ter confiado tanto em alguém que acabara de conhecer e eu sempre reagi a eles com um certo destempero, dizendo “se os amigos não servem para nada nestas horas, para que servem?”
Além de vários traumas – Martins teve de passar acordado todas as noites que passou na cadeia ao som de um interminável “TIM-TIM” que era produzido pelos presidiários tentando cavar um buraco na cela para apanhar os estupradores que estavam com ele – viveu a angústia de não saber quando terminaria seu calvário. Naquele mês eu trabalhei mais no caso dele – indo e voltando do ABC Paulista em companhia de advogados e de seu filho mais velho – do que para a Gazeta Mercantil, onde era diretor.
Demorou, mas vencemos a cruel burocracia e os sangue-sugas da Justiça e libertamos o amigo. Comemoramos a liberdade numa pizzaria de Jundiaí.
O jornal O Estado de São Paulo e a revista Isto é, na época comandada pelo meu amigo Hélio Melo, fizeram reportagem sobre o caso. O texto do Estadão foi muito confuso para irritação do doutor Rui Mesquita que comandava o jornal naquela época e sempre interessado nos assuntos que envolviam a pequena empresa.
Martins ainda sofre com o episódio. Tem uma pequena metalúrgica em Valinhos e até hoje não se reequilibrou financeiramente. Há pouco tempo venceu o licenciamento de seu carro e por falta de dinheiro não consegue renovar. Está à pé. E por causa disso reduziu muito as visitas que me fazia, semanalmente. Vem em casa de carona com algum amigo comum. Ele me faz muita falta.
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