13/09/2014

Jogo e maldade

       Enfrentei nos últimos anos uma grave crise financeira, causada pela derrocada do jornal Gazeta Mercantil, onde fui diretor de Unidade de Negócios por mais de seis anos e cheguei a passar quase um ano sem receber salário. Consumi nesse período toda a minha poupança e tive por diversas vezes de recorrer à ajuda de parentes - para ser mais preciso, foi um parente, um sobrinho da mulher, Sinésio, que teve a generosidade de transferir para mim uma parte da sua poupança, que ainda não consegui devolver. Devolverei. 
        Pois foi nesse período de aperto que eu comecei a “brincar” com as máquinas caça-níqueis. Embarquei nessa história por curiosidade e na época em que as “maquininhas” começaram a entrar no Brasil, ainda muito longe de representarem alguma ameaça à poupança e à renda das pessoas. A inflação, a instabilidade da moeda brasileira dificultava a entrada no país de máquinas que operassem com a moeda nacional que num dia tinha um valor e no dia seguinte outro valor completamente diferente.
        As primeiras máquinas que aceitavam o dinheiro nacional operavam, depois do Real, com moedas de 25 centavos e os bares viviam cheios de potes dessas moedas para alimentar o jogo. Nesse tempo, quem perdia muito, perdia 20 reais, ou seja, 80 moedas de 25 centavos. As primeiras maquininhas eram rústicas e lentas.  O jogador alimentava a maquininha com as moedas que caiam numa plataforma metálica. Um dispositivo da máquina empurrava as moedas em direção a um “abismo”. De vez em quando, a máquina cuspia uma fichinha de plástico, com um valor em Real inscrito no verso, que era o valor da restituição. As fichas se misturavam às moedas que as conduziam rumo ao “abismo”. Ficha caída no “abismo”, dinheiro no bolso.  A máquina restituía, a grosso modo, 20 por cento das apostas.
        A coisa começou a engrossar com a chegada das máquinas do “cachorrinho”. Elas começaram a aceitar notas de um e cinco reais. Tinham o que era chamado de noteiro, um buraco onde o jogador punha as notas. A máquina recebia a nota, conferia a possibilidade de ser falsa, e exibia numa tela o valor de créditos (para jogo) correspondente ao dinheiro depositado. Depositado o dinheiro, estabelecido o crédito, era só jogar- apertar um botão embaixo e acompanhar o resultado na tela. Chamava-se máquina do “cachorrinho” porque de vez em quando ela liberava um Poodle à direita da tela e o cãozinho, todo faceiro, puxava uma fieira de diamantes. Cada diamante representava algum valor de restituição. Era uma espécie de pequeno prêmio,  de "gás” para o jogador suportar o tranco até o pagamento de um bônus que, dependendo da máquina, passava de mil reais. Eu não conheci máquina que tenha pago o bônus antes de “engolir” pelo menos dois mil e quinhentos reais.

        Havia máquina do cachorrinho por toda parte: bares com e sem bocha, mercearias, padarias, clubes, restaurantes. Não havia comércio que não se interessasse pela novidade. A cada início de semana o dono da máquina aparecia para acertar as contas: apostas, bônus pago, ficava tudo registrado lá dentro. Sempre foi um ótimo negócio. Há informações de que até a Máfia Siciliana tinha - ou tem, não se sabe - participação no jogo das máquinas eletrônicas no Brasil.
        Eu ainda não havia me interessado pela máquina do cachorrinho quando, de carro, a caminho de casa, parei para ajudar a socorrer um jovem que se acidentara  de moto. No meio daquela confusão alguém pediu por um celular. Procurei pelo meu e descobri que o havia esquecido na cancha de bocha, onde ficara jogando até quase meia-noite. Esperei pela chegada da ambulância e voltei para recuperar meu aparelho. Lá chegando, vejo que três companheiros da bocha haviam enfiado, em sociedade, uma pequena fortuna cada um na maquininha do cachorrinho. Lembrei-me que eu estava com o bolso cheio de notas de cinco reais que havia recebido de troco numa pequena compra num supermercado.
        Os três já haviam parado de jogar por exaustão e combinado de continuar no dia seguinte bem cedo. Brinquei com o trio:
 - A,ha! Agora sou eu que vou tirar esse bônus!  exibia uma nota de cinco reais.
        Dois dos jogadores chegaram a pedir pelo amor de Deus  para eu não fazer aquilo, mas o terceiro começou a dizer :
 -  Deixa, deixa ele por! A manhã será menos cinco reais que a gente terá de colocar!
        Relutei alguns instantes, mas cedi às provocações  do jogador que gritava histérico Põe! Põe!. Parece que a máquina havia planejado tudo com o capeta. Pagou-me o bônus de mais de mil reais, mais vários cachorrinhos, quer dizer, um amontoado de prêmios que fez os amigos da bocha dizerem, por muito tempo, que eu era o único apostador a ter tirado o que poderia ser chamado de um bônus sensacional. Dali para frente peguei gosto pela coisa. Não demorou para surgir no círculo familiar a versão de que minhas dificuldades financeiras eram consequência do jogo, pois tudo que eu ganhava eu perdia nas maquininhas. Maldade, pura maldade.
        O caldo só foi engrossando, ou seja, as máquinas do cachorrinho eram espécie de videogame perto do que estava por vir e, no Brasil, tiveram uma clara função: formar a clientela para máquinas muito mais poderosas e capazes de roubar, em poucas horas, uma fortuna de um jogador contumaz e imprevidente. É um jogo muito ruim, dizia cheio de razão Edison Gasparoto, um amigo que admitiu estar viciado nas maquininhas e encontrou grande dificuldade para parar, mas parou.

         Atrás das máquinas do cachorrinho vieram outras muito mais modernas e poderosas, que por ironia dos criadores desse jogo eram chamadas de máquinas do capeta - uma sequência de três capetas na tela era - ou é, já não sei mais - um dos maiores prêmios que elas pagavam. E atrás da máquina do capeta vieram outras e outras, os controladores deste jogo eram férteis em imaginação: vieram as máquinas de cartela, que simulavam a antiga tômbola em várias versões, e uma infinidade de outros jogos que eu nem cheguei a conhecer. A que mais se espalhou foi uma que apresentava na tela quatro cartelas e o jogador definia o valor da aposta. Cada vez que o botão da aposta era apertado, uma pedra preenchia uma casa de uma das cartelas. Quando se conseguia preencher totalmente uma, duas, três ou quatro cartelas, o jogador batia o bingo, ou seja, recebia o prêmio máximo - um, dois, três mil reais ou mais, a depender do valor da aposta e do número de cartelas preenchidas.
        Foi na mesma época que apareceu nas grandes cidades brasileiras uma enxurrada de bingos, que de bingos mesmo só tinham o nome, que servia para mascarar o jogo eletrônico.  Era só entrar num deles e presenciar dezenas de máquinas de última geração em pleno funcionamento. No início, o bônus não tinha limite, poderia chegar a alguns milhares de reais. O valor aumentava de acordo com o volume de apostas. Certa vez começou a haver uma corrida ao bingo de Valinhos: o valor do bônus numa das máquinas havia atingido 150 mil reais. Alguns bingos de várias localidades ficaram quase vazios. Consta que os controladores do jogo enxergaram no caso de Valinhos uma clara distorção do sistema. As máquinas do Brasil foram então preparadas para pagar um bônus de valor máximo de 32 mil reais.
        Era evidente que as máquinas poderiam ser preparadas com antecedência a gosto dos donos do jogo, mas os jogadores se recusavam a acreditar nessas hipóteses. Umas pagavam o bônus com quinhentos reais de apostas, outras com mil, outras com três mil e havia aquelas que simplesmente não pagavam. No Rio de Janeiro, numa ação impetrada por uma entidade de defesa da economia popular, um juiz ordenou que um perito vistoriasse uma das máquinas por dentro; foi quando descobriu-se que elas tinham um drive que regulava o volume de restituições: drive aberto, muitos prêmios; drive fechado, poucos prêmios.
        Uma vez, fui testemunha de um episódio que assombrou os frequentadores do Bar do Concórdia, em Valinhos: na boca da noite, chegaram três jogadores - um casal bem jovem, uma senhora de uns 60 anos, que se fazia acompanhar por uma criança de 10 ou 11 anos . Chegaram e ocuparam três das máquinas. Em menos de meia hora  bateram 10 ou 12 bingos, um atrás do outro. O dono do bar pagou os primeiros prêmios  valor de três a quatro mil  reais- e se recusou a pagar os demais. Desconfiado de alguma treta, chamou o dono das máquinas que confirmou suas suspeitas: o trio era conhecido em todos os bingos da região de Campinas por aplicar o mesmo golpe. Deixava alguém do lado de fora passando um código a quem estava jogando. Era o código do bingo. Eu havia notado que antes de bater  um bingo, o jogador recebia uma chamada pelo celular. O trio foi escorraçado dali sob ameaça até de morte. Vá entender!
        Quem me via com frequência na frente de uma daquelas máquinas não vai acreditar que eu tinha meu limite; nunca aceitei perder mais do que quatrocentos reais numa noite de extremo azar. Quando perdia quatrocentos, ficava possesso. Parava de jogar alguns dias e ficava bicando as máquinas, ou seja, punha um valor mínimo aqui outro acolá. De repente, tirava um bônus ou batia um bingo: pronto! Estava habilitado a perder mais quatrocentos reais, o que era uma fração da minha aposentadoria que na época não usava, por desnecessário, para comprar gêneros de primeira necessidade. Meu salário nessa época era mais de quinze vezes o valor da minha aposentadoria. E  houve um longo período - mais de um ano - que uma dessas maquininhas me sustentou e contribuiu para o pagamento de algumas dívidas pesadas.
        Foi assim: já falida,  a Gazeta Mercantil havia me transferido para Santo Amaro, em São Paulo, onde fui inicialmente editor de meio-ambiente e depois editor de um caderno que era produzido pelas sucursais. Ao passar, na hora do almoço, em frente a um bar nas vizinhanças do prédio da Gazeta, ouço o som inconfundível de uma das malditas maquininhas. Entrei, havia gente jogando, esperei. Tinha dinheiro trocado no bolso, vou perder 20 reais, decidi. Pus dez, quando  ia por mais dez, chegaram dois rapazes que me pediram licença, pois tinham de dar uma conferida na máquina, afastei-me para deixá-los à vontade e um deles aproximou-se da máquina e meteu um dos olhos num visor acima da cabeça do jogador, que até então eu sequer havia notado. PQP, exclamou o rapaz assim que retirou o olho do visor. Os dois se afastaram, me deixando ali sem saber se continuava ou parava de jogar... Dei um tempo, esperei os dois se retirarem e meti um dos olhos no visor. Enxerguei dois números, um sobre o outro. E a única coisa que pude perceber foi uma enorme discrepância entre um número e outro. Resolvi jogar mais dez reais: agi certo, a máquina comeu menos de cinco reais e me pagou um bônus de quatro mil reais, o dono do bar teve de chamar o dono da máquina, pois não tinha ali dinheiro suficiente para me pagar. Fazia tempo que eu não via tanto dinheiro na mão.
        Fiquei mais de um ano trabalhando naquele prédio da Gazeta e de olho no visor da maquininha. Sempre que a discrepância entre um número e outro estava grande eu dava uma investida... punha dez, vinte, no máximo cinquenta reais; era batata: entrava geralmente duro e saía de bolso cheio. Essa maquininha ajudou-me também a me afastar definitivamente desse tipo de jogo, as máquinas que só roubavam perderam a graça.
        Olho hoje para esse meu passado de jogador e vejo que, junto com o cigarro, as maquininhas foram também uma estupidez. O período em que joguei só teve uma utilidade, a de constatar que a mídia  é cúmplice do jogo e da maioria dos processos que chegam  para erodir  a renda e a economia populares. A mídia é cega. Agora mesmo deve achar que a polícia venceu a guerra contra o jogo eletrônico no Brasil, sem saber que as maquininhas foram transferidas para a Internet e ganharam a forma de tabletes, celulares e computadores portáteis.




4 comentários:

  1. Jogo e cigarro, uma mistura explosiva: o primeiro leva sua grana e outros bens imateriais; o segundo a sua saúde e muitas vezes a vida.

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    1. É isso aí, Irmo. Ainda ontem, 15, estive no Lucy Montoro para uma consulta médica e conheci Gabriel. Está paraplégico desde que sofreu um acidente de moto há vários meses. Jovem, fumante, não consegue parar de fumar. Ele e o pai, seu cuidador, são fumantes compulsivos como eu fui. Uma pena!

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  2. de qual visor vc esta falando? o monitor?

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