por Dirceu Pio
Ele já foi brilhante! Sua reportagem
sobre o Caso Manoel Fiel Filho, operário torturado até a morte nos porões do
regime militar, permanece até hoje como símbolo de jornalismo bem executado –
texto enxuto, narrativa sensível e tocante.
Nessa época – anos 1970 –
convivemos por algum tempo na mesma redação do jornal O Estado de São Paulo,
ele repórter e eu numa função de controler, ao lado do amigo comum, Raul
Bastos.
Foi mesmo por pouco tempo. Na
metade de 1976, designado por Raul Bastos para chefiar a Sucursal de Curitiba,
mudei de estado e de cidade, enquanto ele, Ricardo Kotscho, se transferia para
a redação da Folha de São Paulo.
Perdemos o contato e eu nunca tive
a oportunidade de lhe dizer que admirava muito o seu trabalho.
Pela Folha de São Paulo, mergulhou
fundo na greve dos metalúrgicos do ABC. Foi mandado tantas vezes a São Bernardo
do Campo que se apaixonou por Luiz Inácio Lula da Silva, o jovem líder
metalúrgico que despontava com furor na região que o padre Lebret havia
descrito como um gigantesco acampamento de operários formado em torno de
grandes indústrias.
Quando conheci Ricardo Kotscho em
São Paulo, eu também já havia passado pelo ABC Paulista como repórter do Diário
do Grande ABC e depois chefe da Sucursal do ABC dos jornais O Estado de São
Paulo e Jornal da Tarde, onde convivi, entre tantos outros talentos, com esse
que é considerado hoje o melhor repórter fotográfico do Brasil, Pedro
Martinelli.
Peguei nessa época o movimento que
antecedeu as greves dos metalúrgicos que revelaram Luiz Inácio, feito de
Operações Tartaruga, operários cruzando os braços em frente aos tornos e
prensas, o máximo de ousadia que o movimento operário era capaz de opor ao
regime militar.
Saí do ABC mas deixei fontes por
lá, pessoas que me mantiveram informado sobre tudo de mais importante que
ocorria na região e já me alertavam para o “caráter gelatinoso” do líder em
ascensão. Só votei em Luiz Inácio uma só vez para não contribuir com a eleição
de Fernando Collor, atitude da qual me arrependi pouco tempo depois.
MERGULHO NA REPORTAGEM
Eu passaria quase 20 anos em
Curitiba, dedicando mais de 90 por cento do meu tempo à minha paixão no
jornalismo, a reportagem de campo, de interesse geral, que me permitiu viajar
por grande parte do Brasil e conhecer – e entrevistar – centenas de pessoas dos
mais diferentes níveis sociais.
Preciso mencionar aqui (vocês vão
entender minhas razões mais à frente, neste texto) que vivi nestes mais de 40
anos de reportagem muitos momentos de glória.
O primeiro deles ocorreu na
Sucursal de Curitiba durante conversa que tive com um repórter da equipe (Caco
de Paula). Contava a ele, despretensiosamente, as peripécias que tive de fazer
para apurar uma reportagem sobre um incêndio ocorrido na periferia de Mauá,
ainda nos meus tempos de ABC Paulista, e ele abriu a gaveta da mesa e tirou um
livro para mostrar algo que me impactaria pelo resto da vida: a reportagem que
eu mencionava a Caco de Paula fora transcrita pelo autor do livro, o professor
de Comunicação da PUC de Campinas (SP), Mário Erbolato, como um “ótimo exemplo”
de jornalismo interpretativo, a tendência que ele dissecava na obra.
A transcrição do meu texto foi
antecedida por quatro páginas de elogios rasgados à reportagem e ao modo como
apurei e estruturei a narrativa.
Enquanto Ricardo Kotscho viajava
com assiduidade a São Bernardo, eu viajava com frequência a Foz do Iguaçu para
me transformar num dos poucos repórteres que acompanharam, do início ao fim, a
construção da hoje segunda maior hidrelétrica do mundo, a Itaipu (pedra que
canta, do tupi-guarani), feita em parceria com o Paraguai.
Começa aí a grande diferença entre
eu e Ricardo Kotscho: enquanto ele se deixou apaixonar perdidamente por sua
fonte, o líder Luiz Inácio, nem em sonho fui apaixonado pelo general Costa
Cavalcanti, o diretor-geral de Itaipu. Sempre mantive a necessária distância
crítica a todas as minhas fontes.
DENUNCIEI TODAS AS MAZELAS
Costa Cavalcanti e todos os demais
diretores da Itaipu Binacional sempre me trataram com especial deferência e eu,
ao longo da obra, denunciei todas as mazelas dos responsáveis pela construção,
mazelas que foram desde a contratação irregular de “peões barrageiros” até o
isolamento imposto ao município de Guaíra.
Guaíra abrigava as Sete Quedas,
uma grande maravilha da geografia brasileira sepultada pelas águas da represa
de Itaipu.
Eu falava ali atrás dos momentos
de glória da minha vida de repórter: outro deles foi sem dúvida o momento em
que a Câmara Municipal de Guaíra me concedeu o titulo de Cidadão Honorário em
agradecimento ao que uma das minhas reportagens, publicada pelo Suplemento de
Turismo do Jornal O Estado de S. Paulo, produziu de benefícios para o
município.
Com um texto minucioso que pela
primeira vez escancarava a todo o país as belezas das quedas que iriam
desaparecer, a reportagem criou um fluxo turístico à cidade que foi tão intenso
que os empresários tiveram de providenciar, em regime de emergência, a
ampliação de hotéis e restaurantes.
O fluxo foi mesmo tão intenso que
despertou o ainda incipiente movimento ambientalista brasileiro. Começaram a
surgir protestos de toda ordem pelo país contra a destruição das quedas a ponto
de preocupar a empresa binacional responsável pela implantação da usina.
DIMINUIR A POTÊNCIA
Assessorados por especialistas, os
manifestantes descobriram que era possível salvar 7 Quedas se a usina perdesse
uma pequena parte de sua potência. Formado o lago, afogadas as Quedas, a
primeira preocupação de Itaipu foi dinamitar a crista das quedas usando o
argumento criminoso de que as pedras atrapalhavam a navegação pelo lugar.
A Sucursal de Curitiba sob meu
comando, tendo como repórter o hoje afamado historiador Laurentino Gomes,
denunciou o passo a passo da dinamitação.
Dali em diante, tive apenas alguns
encontros esporádicos com Ricardo Kotscho. Um deles foi na cobertura do
acidente de avião, na região de Ponta Grossa (PR), que matou dois altos diretores do Bamerindus.
Eu chegara à região onde o avião
fora visto no ar pela última vez, com três ou quatro dias de antecedência. Já
havia, portanto, me assenhoreado da logística da cobertura.
Kotscho, não! Desembarcou no local
com grande atraso e no meio do burburinho que a notícia da descoberta do avião
acidentado provocou.
PERDIA A EMBOCADURA
Ele nunca vai saber, mas a
confirmação da notícia de que o aparelho foi encontrado fora arrancada a
fórceps por mim e pelo amigo Mauro Bastos, enviado especial do Jornal do
Brasil, depois da queda de um helicóptero-bolha por excesso de peso.
Foi só demonstrarmos ao piloto que
havíamos observado a irregularidade para que ele nos abrisse a informação que o
comando das buscas tentava esconder por uma razão até compreensível: no avião
acidentado, havia várias sacolas de dinheiro que eram levadas às fazendas do
Bamerindus em Tomasina para pagamento de empregados e tentava-se evitar assim
que a chegada de jornalistas pudesse atrapalhar o resgate do dinheiro.
Eu socorri Ricardo Kotscho
repassando-lhe as informações que ele precisou para redigir sua matéria naquele
dia.
Na manhã seguinte, fomos todos ao local do acidente. O avião, um pequeno
Sêneca, havia caído de bico no alto de uma planície rochosa encoberta por uma
floresta comercial de pinus.
E foi ali, diante de um pequeno
avião despedaçado, que eu percebi que Ricardo Kotscho, já enfiado de cabeça no
PT, começava a perder a sua embocadura de repórter: entre tantos jornalistas,
só eu e Mauro Bastos tivemos a curiosidade de descobrir as causas da queda do
Sêneca.
Depois de observar a rota que o
aparelho deveria ter feito até cair, caminhamos em sentido contrário por meio
quilômetro até começarmos a encontrar pedaços da asa direita do avião. Não
cheguei a ler o texto que o Mauro escreveu para o Jornal do Brasil, mas ainda
me lembro das primeiras frases do meu texto: “Foram três ponteiros de
eucalipto, com menos de uma polegada de espessura, que roubaram uma das asas do
avião do Bamerindus e o fizeram cair de bico cerca de 500 metros â frente sobre
um maciço rochoso...”
CARREGADOR DA PASTINHA
Outros dois encontros ocorreriam
ainda em Curitiba e ele já estava transformado no assessor dileto do Lula, o
homem que carregava a pasta do ex-líder
sindical que seria derrotado duas vezes antes de se eleger presidente.
Entre uma candidatura e outra, já com a aura do assessor do líder que chegaria à presidência da República,
tivemos mais um encontro, ele embarcando para Curitiba e eu chegando ao
aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Numa conversa rápida, ele me informou que iria
assumir o cargo de diretor de redação das empresas de José Carlos Martinez (Um
jornal diário e dois canais de televisão em Curitiba e Londrina); e eu o aconselhei a tomar muito cuidado com seu novo patrão.
Percebi claramente que Lula
roubava avidamente o que seu assessor tinha de melhor: além da competência
refinada para o jornalismo, rapinava também os seus valores éticos.
O deputado José Carlos Martinez,
além de ser um dos primeiros políticos a embarcar de corpo, alma e bolso na
candidatura de Fernando Collor à presidência, pertencia (ele morreu num
acidente aéreo em outubro de 2003) à Família responsável pela “colonização” de
uma imensa área no Oeste do Paraná, onde foram assassinados dezenas de centenas
de colonos, conhecida como Grilo Santa Cruz.
José Carlos Martinez foi derrotado
fragorosamente ao governo do estado do Paraná. Durante a campanha em 2002,
Requião convocou a imprensa com a promessa de que iria divulgar um dossiê sobre
o Grilo Santa Cruz. De fato, a entrevista aconteceu, mas o “dossiê” era feito
de cópias de todas as dezenas de reportagens que eu (90%) e a jornalista Tonica
Chaves (10%) havíamos feito na região-alvo da imensa grilagem.
Antes de nos encontrarmos,
desgraçadamente, aqui no facebook, eu e Kotscho nos avistamos ainda duas
vezes...Ele ainda estava eufórico com o “desempenho” do seu ídolo na
Presidência da República, que dava início ao seu segundo mandato.
AMOR CEGO E
INDESTRUTÍVEL
Kotscho já havia se desligado do
cargo de assessor de imprensa do governo, me fazendo acreditar que e se
afastara pra não se envolver na roubalheira que já corria solta. Como fui
ingênuo!
Tive de assistir a uma palestra
dele durante um seminário sobre comunicação em São Paulo para acompanhar um amigo argentino, o jornalista e escritor,
Ricardo Sarmiento, que também falou no
evento.
Estávamos no anfiteatro de um
hotel e depois das palestras descemos para o bar, eu, Sarmiento, Kotscho e
vários outros jornalistas, para um bate papo e um chope.
A atração da mesa, é claro, foi
ele, Ricardo Kotscho, e suas histórias dos bastidores do Governo Lula, nem
todas contadas no livro – Do Golpe ao Planalto – Uma vida de repórter – que ele
lançava na época.
Pude entender, com todas as letras, as razões do cego e indestrutível fascínio
que Ricardo Kotscho passou a sentir por Luiz Inácio Lula da Silva:
- Quando Lula venceu o segundo
turno (Ricardo Kotscho contando) fui
convidado para um jantar comemorativo no Palácio da Alvorada... Estávamos
apenas em três, eu, Lula e a Maria Letícia... Contei para ele que a pergunta
que mais me faziam após as palestras era se ele sabia ou não sabia do
Mensalão... E ele me perguntou, curioso: “E o que você responde?” Eu digo que
você não sabia mesmo de nada porque anda muito esquecido ultimamente! (muitos e
muitos risos)
PERDEU MESMO A EMBOCADURA
Em nosso último encontro, outra
vez em São Paulo, ele mal conseguiu disfarçar a raiva que deveria começar a
sentir de mim. Havia feito uma parceria com meu grande amigo Hélio Melo para
lançamento da revista Brasileiros. Estava no Rio de Janeiro quando comprei numa
banca um exemplar do primeiro número da revista.
No hotel, li toda ela com
desdobrada atenção. A notei todos os pontos falhos (já tinha alguma experiência
com edição de revistas) e no outro dia enviei, com intuito de ajudar, mensagem
ao Hélio fazendo uma crítica um tanto severa da primeira edição onde apareceu
uma longa reportagem de Ricardo Kotscho.
A reportagem de Kotscho trazia o
perfil de um personagem muito interessante do litoral nordestino, uma ótima
história simplesmente destruída pelo repórter que perdera todo o brilho.
Lembro-me que eu perguntava ao Hélio na mensagem: “O que aconteceu com o
Kotscho ? Desaprendeu tudo o que sabe? Se puder, diga pra ele que quando a
gente tem um personagem de valor, não precisa encher o cara de elogios... Conta
a história dele e deixe que o leitor descubra que ele é um grande brasileiro!”
Faz, creio, mais de dois anos que
eu o adicionei no facebook. Nunca deu em todo esse tempo qualquer sinal de
vida. Bastou que a atual campanha esquentasse e eu, usufruindo dos meus
direitos de cidadão, tornasse pública minha adesão à candidatura de Jair
Bolsonaro, para que ele mostrasse as suas garras petralhas.
Já me chamou de canalha, medíocre,
e me atirou muitas outras ofensas. No último comentário que ele fez em minha
página de facebook, escreveu: “Dirceu Pio, como jornalista medíocre que você
sempre foi, poderia pelo menos acertar a grafia do meu nome... Sabia que você
era um reacionário cretino, mas não desconfiava que você fosse tão canalha. O
que aconteceu com você? Tá fazendo tudo isso, rebaixando-se, de graça? Não
acredito...”
Isto tudo, eu sei, são palavras
atiradas ao vento e eu nem tenho mais idade pra me deixar ferir por essas
flechas petralhas.
Só um aspecto me preocupou:
pouquíssimas pessoas dessa minha enorme base de amigos do facebook conhecem
minha história profissional, de modo que neste longo texto que aqui encerro
quis apenas dar alguns poucos exemplos para que todos meus leitores tenham
subsídios para me comparar a quem me chama de medíocre.
Lula abraçado com o Ricardo Kotscho