A novela que termina nesta semana no horário mais nobre da líder de audiência, a TV Globo, oscilou o tempo inteiro entre o bom e o ruim; o novelesco e o discurso; e o saldo que Velho Chico deixa é o de uma confusão dramática, de qualidade duvidosa.
O panfleto não é a linguagem do folhetim e novela é o desenvolvimento, em capítulos, de histórias de amor, drama, paixão, crimes, mistérios, sem ligações diretas com política - folhetim!
É o que sinto, como jornalista e telespectador.
Coube à vida real trazer a dose extra de dramaticidade que faltou à trama: terrível mesmo foi a morte prematura do ator Domingos Montagner por afogamento durante banho descontraído no rio São Francisco. Ele se foi e deixou em vida, traumatizada, sua companheira de passeio e seu par romântico na novela, Camila Pitanga.
No papel de Santo dos Anjos, o líder de pequenos agricultores das margens do rio São Francisco, Montagner não havia escapado do panfleto. Exercia na família, em luta permanente contra o Coronel Saruê (interpretado por Antônio Fagundes), o poder moderador para aplacar a ira de seu irmão Bento dos Anjos (Irandhir Santos), que parecia interpretar na trama o radical José Rainha, aquele mesmo, o líder do MST.
Contra o radicalismo do irmão atacava com discursos pacifistas e um certo messianismo.
Uma pena, porque Velho Chico tinha tudo para se transformar num ícone, uma referência da teledramaturgia brasileira. Se não, vejamos:
- Tinha um rio sinuoso a atravessar regiões desconhecidas do grande público e capazes de oferecer cenários ao mesmo tempo majestosos e deslumbrantes...
- O set de gravações tinha proximidade com o primeiro e único experimento bem sucedido no mundo de agricultura sintrópica, colocada na trama por Ruy Barbosa, a Fazenda Fugidos da Seca e hoje conhecida por Fazenda Olhos D’água, no sul da Bahia. (A agricultura sintrópica é um invento do suíço Enst Gots, que encontrou nessa área da Bahia a oportunidade de colocar na prática suas teorias)
- Tinha, também nas margens do São Francisco, extensos pomares irrigados, com produção já consolidada, tudo para exportação pelo Nordeste brasileiro.
- Tinha, nas três fases da história, um elenco extraordinário, com atores e atrizes para encher de orgulho os brasileiros que apreciam a nossa teledramaturgia, com destaque para Rodrigo Santoro no papel de Afrânio de Sá Ribeiro (O coronel Saruê), na primeira fase, e Selma Egrei, no papel de Encarnação de Sá Ribeiro (mãe do coronel Saruê), na segunda e última fase.
- Tinha uma equipe técnica de primeiro mundo, a concluir pelas imagens captadas e editadas, tanto externas quanto internas.
- Tinha, nas margens do rio, cultura regional e cidades históricas impressionantes e de encher os olhos.
- Tinha uma trama de bom folhetim com destaque para o reencontro de Maria Tereza (Camila Pitanga) com Santo dos Anjos depois de 30 anos de afastamento forçado pelo coronel Saruê.
Tinha tudo isso e muito mais, mas o autor conseguiu jogar tudo na lata do lixo por querer fazer política em folhetim. Foi uma discurseira braba nas duas últimas semanas, insuportável, cansativa.
Benedito Ruy Barbosa quis impor a defesa de causas e teses pelo panfleto, pelo discurso. Incrível, mas talvez ainda não tenha aprendido que, em novela, as mensagens de caráter político tem de ser passadas com sutileza, leveza, pela parábola, pela metáfora, pela alegoria.
Ficou claro que ele não sabe dessas coisas na cena dos últimos capítulos em que os personagens encarnados pelo protagonista Antônio Fagundes (Afrânio e Saruê) se enfrentam no terreno arenoso da foz do rio São Francisco em meio às torres de energia eólica. A cena pretendeu construir a velha metáfora de Dom Quixote brigando contra os moinhos de vento, mas foi longa, arrastada e chata.
SÓ DISCURSOS
Nos últimos capítulos, todos, ou quase todos, os personagens discursaram:
- Dalva (Mariene de Castro), a linda mulata empregada na sede da fazenda do Coronel Saruê, grita contra a escravidão, a discriminação racial e a dureza do trabalho.
- Ceci (Luci Pereira), mãe da professora Beatriz, grita contra o massacre de seus antepassados indígenas.
- Miguel (Gabriel Leone), o neto do Saruê, grita contra o peso que carrega nas costas pelos crimes cometidos por sua família na colonização daquelas terras.
- O único a ter direito a fazer discurso seria o prefeito de Grotas, Raimundo (Saulo Laranjeira); explico: Saulo é humorista e dos bons, mas a Globo o tirou da Praça é Nossa (SBT), onde interpretava com exuberância o típico político brasileiro, demagogo e corrupto, para lhe dar um papel menor em Velho Chico, onde seu estrionismo também foi afogado.
- O inquieto e eloquente Bento dos Anjos (Irandhir de Souza) continua como a metralhadora giratória que sempre foi: ataca a agricultura química, a corrupção, o coronelismo, o latifúndio, etc. etc. etc..
- Beatriz (Dira Paes) é eleita prefeita de Grotas e continua seus discursos contra a agricultura química, o coronelismo, a opressão, quer dizer, só podia mesmo ser namorada de José Rainha, perdão, de Bento dos Anjos.
Talvez eu seja o único telespectador que ainda guarda frases e conteúdos da interminável “cantilena discursiva” de Velho Chico. E o fiz por dever profissional; não fosse por isso, já teria imitado todos os demais: esquecido!
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Domingos Montagner, o Santo dos Anjos, morte por afogamento na vida real. Uma pena !
Tragédia de Mariana, o maior desastre ambiental do Brasil, ainda impune !