Em seu irretocável A Corrosão do Caráter (Editora Record, 2008), o sociólogo americano Richard Sennett nos mostra o quanto podem ser deletérias para a dignidade do ser humano essas novas relações de trabalho, de um novo capitalismo, efêmeras, voláteis, cada vez mais parecidas com o regime de facção. Quisera que Senett se dedicasse a estudar também a dilapidação do caráter das pessoas absorvidas por um certo ativismo político onde finalidades abjetas passam a justificar também os meios mais abjetos. Seria extraordinário que ele o fizesse.
Um bom exemplo do quanto já foi corrompido o caráter desses ativistas a que me refiro pode ser observado durante a visita que nos fez neste final de fevereiro de 2013 a jornalista cubana Yoani Sánchez. Que o diga o jornalista Sandro Ângelo Vaia, autor do livro A Ilha Roubada, ed. Barcarolla, 2009 – de leitura obrigatória para quem desejar entender o significado político do fenômeno Yoani Sánchez.
Sobre a ruidosa manifestação de ativistas, ditos de esquerda, contra a presença de Yoani em território brasileiro, Sandro Vaia escreveu:
“A grosseria, a incivilidade e a estupidez são algumas das características mais desagradáveis do ser humano e foram usadas em larga escala não só na Bahia, mas também no plenário da Câmara Federal por algumas pessoas que ainda vegetam no estado primário do processo civilizatório. Até aí, nada a fazer. Não podemos exigir uma nação de fidalgos nem exigir algum tipo de racionalidade de quem confunde a militância política com a barbárie. Ninguém é obrigado a gostar de Yoani Sánchez como ninguém pode ser proibido de admirar e cultuar ditaduras. Infelizmente, a história da humanidade é recheada de massas ululantes que seguem ditadores e homens providenciais de camisas verdes, negras, pardas, boinas vermelhas ou uniformes verde-oliva (“Democracia, agite antes de usar”, blog do Noblat, 22/2/2013 e reprodução neste OI).
Mentira, pura invenção
Como autor do livro sobre Yoani, é natural que Sandro tivesse sido procurado pela mídia para falar da jornalista durante sua visita ao Brasil. Em programa de TV, um dos ativistas que defendem abertamente as manifestações contra Yoani quase não permitiu que Sandro se manifestasse. Sandro foi também um dos jornalistas que entrevistaram Yoani no Roda Viva (TV Cultura), quando teve então a oportunidade de fazer perguntas que contribuíram para que os telespectadores melhor entendessem o fenômeno.
Para os ativistas que já têm uma montanha de gelatina no lugar do caráter é, contudo, inadmissível que um jornalista escreva com tanta liberdade contra os ditadores do presente e do passado e torne público seu repúdio a manifestações tão descabidas. Sua credibilidade tem de ser atacada, ainda que seja através daquela mentira que é irmã siamesa da pusilanimidade.
Sandro Vaia voltou, então, a ser agredido em diferentes espaços da web reservados a certo tipo de ativismo que se manifesta, geralmente, à sombra do anonimato. Vários blogs reproduziram um velho texto, com letras datilografadas para torná-lo crível, algo que lembra um antigo BO (boletim de ocorrência), onde Sandro Vaia aparece “denunciando” o sindicalista Antônio Galdino de atividades subversivas durante o regime militar. É tudo mentira, pura invenção. Antônio Galdino é amigo de Sandro. Foi Galdino quem arranjou o primeiro emprego de jornalista para Sandro Vaia. São amigos desde jovens, nunca brigaram.
A ignomínia foi disparada pela primeira vez pelo Twitter, assinada por um tal de @JornalismoWando. Sandro identificou a pessoa, pressionou. Este ao menos teve a dignidade de ouvir o “acusado”, Antônio Galdino, e publicou um outro texto desmentindo tudo. O próprio Sandro publicou várias vezes o desmentido no Twitter, atribuindo a autoria do tal “documento” à polícia da época da ditadura. “É evidente – reclama Sandro – que os canalhas leram o desmentido, mas fingem que não leram, pois não interessa a eles acreditar que é mentira.”
São, enfim, episódios degradantes hoje potencializados pela web. A falta de caráter nunca foi privilégio das pessoas alienadas, que não professam nenhuma ideologia. Mas, antigamente, disseminar uma infâmia como essa contra pessoas dignas era muito mais difícil. Espalhadas pelo boca-a-boca, as ignomínias eram muitas vezes vencidas pelas dificuldades de propagação. Hoje, não! A internet, com sua capacidade de disseminação na velocidade da luz, dá a elas uma dimensão mundial. Pior que isso: infâmias iguais a essa, assacada contra Sandro Vaia, vagam por essa torrente de “bits” de que é feita a web e continuarão a produzir efeitos daninhos pela eternidade. Nada improvável que os tataranetos de Sandro Vaia ainda possam tropeçar nela daqui a cem anos.
Com sua flexibilidade de uso, a web transformou-se numa espécie de paraíso do mau caráter. É possível lançar sobre as pessoas de bem uma montanha de lama e ficar protegido pelo anonimato. Os “debates” e o repercutório tão em voga na web têm sempre a autenticidade solapada pelas pessoas que se escondem atrás de pseudônimos e registram uma série de e-mails com nomes falsos, registram perfis falsos nas mídias sociais, por não terem coragem e dignidade de assumir, publicamente, aquilo que dizem. Em última instância, se o desejo for o de cometer um desses crimes virtuais e dificultar o máximo possível a identificação de autoria, é possível registrar e-mails e sites no exterior e assim fazer chegar a infâmia ao Brasil.
Ruim com a web, pior sem ela, devem dizer pessoas como Sandro Vaia e Yoani Sánchez, por acreditarem muito na democracia.
(Yoani Sánchez e Maria Julia Coutinho: vítimas da intolerância e da covardia)
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