Por Dirceu Pio
Essa Rio de Janeiro incansável na propagação de horrores já podia ser vislumbrada lá atrás, na década de 1980, durante uma visita ao Inferno Colorido!
“Desculpe, senhor, mas lá eu não vou nem amarrado!”, “Desculpe, senhor, lá eu não entro nem por ordem do presidente da República!”, “Meu senhor, não faça isso comigo... Tenho mulher e filhos pra cuidar!”, de seis a sete taxistas do centro do Rio de Janeiro se recusaram a nos levar – eu e o fotógrafo Carlos Ruggi – ao Inferno Colorido, como era chamado um pequeno pedaço da imensa Favela da Maré, que se espalha ao longo do canal marítimo aos fundos da Ilha do Governador.
Já estávamos quase desistindo quando um deles, depois de saber que éramos jornalistas, resolveu correr o risco. Quando chegamos ao destino, mostrou-se nervoso, tenso... Pedíamos que ele parasse num determinado ponto, mas ele ia parar uma ou duas quadras à frente... Um pé no saco...
De repente vimos um táxi parado do lado de um pequeno prédio... Desci, fui-me informar... O táxi era do presidente da Associação dos Moradores da Favela da Maré... Propus dispensar o meu táxi para que ele passasse o dia conosco nos levando aos pontos desejados... Topou com um belo sorriso...
GRANDE "HONRA"
Posso dizer, portanto, que tive a “honra” de conhecer o Inferno Colorido por dentro, privilégio que era dado a pouquíssimas pessoas do “mundo externo”... Seu nome, se a memória não me falha, era Olavo de Souza, um condutor prestativo e esclarecido...
Era 1986, o ano da extinção do BNH pelo ministro do Desenvolvimento Ubano e Meio Ambiente, o paranaense Deni Lineu Schuwartz, e eu arrematava uma reportagem sobre desvios no projeto de reurbanização da Favela da Maré, financiado e executado pelo banco...
Não existiria, portanto, um condutor melhor para nos apresentar aquele mundo tenebroso que Olavo... Enquanto dirigia, contava:
- Isto aqui tudo que vocês estão vendo foi resultado da realocação das famílias que moravam em palafitas fincadas no canal...
- Por que cada casa parece ter sido pintada com cores diferentes?
Olavo deu uma gostosa risada e contou:
- Depois de construir essas casinhas, o BNH as entregou aos moradores sem pintura... Algum maluco lá de dentro resolveu exigir cores apropriadas para não causar a chamada monotonia da paisagem, típica dos conjuntos habitacionais populares... Os compradores encararam a exigência como uma ofensa e foram reclamar com o ministro Mário Andreazza (do Interior) numa vez que esteve aqui para entregar um lote das casas... Andreazza liberou geral e os moradores, de pirraça, resolveram pintar cada casa de cores diferentes... Foi assim que nasceu o “Inferno Colorido”...
CIEPS ABANDONADOS
Passamos o dia vistoriando o imenso conjunto habitacional e vimos coisas realmente assustadoras: dois dos Cieps construídos por Leonel Brizola haviam sido inaugurados e abandonados porque não havia professor com coragem suficiente pra trabalhar neles... Ambos já haviam virado pontos de desova dos cadáveres que o narcotráfico não parava de produzir...
Paramos e descemos do carro sobre uma ponte que – informava Olavo – já era obra da futura Linha Vermelha... Passava muita gente a pé pela ponte e a marca de quase todas elas era o rancor estampado no rosto com olhares que pareciam nos fuzilar... Eu mesmo sugeri sairmos logo dali... Das poucas vezes na vida que eu temi pela minha segurança e das pessoas que me acompanhavam...
Não eram ainda quatro horas da tarde quando Olavo resolveu encerrar a corrida e o fez com um argumento irrecorrível: “A partir deste horário, eu mesmo não gosto de circular por aí... Eu também tenho mulher e filhos pra criar!”
VAMOS AGORA A MUZEMA
Chama-se Muzema a encosta num dos morros do Rio de Janeiro onde, na primeira quinzena de abril deste 2019, após chuva intensa, dois prédios desabaram, matando e ferindo gravemente mais de 20 pessoas.
Na mesma encosta, outros três prédios estão interditados por ameaça de desabamento...
A quase dez dias do desastre, a polícia ainda não conhece os responsáveis pela construção e nem pela administração dos prédios que pertencem à Milícia e a milicianos que já decretaram aos moradores e vizinhos: “Quem revelar o que não deve, morre!”
Na verdade, o Rio de Janeiro é uma cidade que viveu nos últimos 40 anos - ou talvez mais - um festival de negligência, omissão, descalabro, que a foi transformando de cidade maravilhosa numa gigantesca Muzema ou num gigantesco Inferno Colorido, um território ocupado por milicianos, narcotraficantes, corruptos, corruptores e uma classe política, quase sem exceções, cúmplice e incentivadora da esbórnia geral....
No Rio de Sérgio Cabral, Garotinho e Pezão nem a Igreja Católica ficou de fora da Lava Jato: Wagner Augusto Portugal, ex-padre e ex-braço direito do cardeal-arcebispo, dom Orani Tempesta, em delação premiada denunciou o arcebispado em desvios de verbas da Saúde que totalizaram nada menos de 52 milhões de reais. Wagner era tão íntimo do cardeal que o chamava de você...
E não seria impróprio dizer que a cidade tem como símbolos de seu empresariado homens impolutos como Nelson Tanure, Sergio Naya (por sorte, já falecido), Marco Antônio de Luca, Eike Batista, Fernando Cavendish, Carlos Arthur Nuzman, Leonardo Gryner, etc. etc. ...
Não, o Rio não podia mesmo dar certo....
Essa Rio de Janeiro incansável na propagação de horrores já podia ser vislumbrada lá atrás, na década de 1980, durante uma visita ao Inferno Colorido!
“Desculpe, senhor, mas lá eu não vou nem amarrado!”, “Desculpe, senhor, lá eu não entro nem por ordem do presidente da República!”, “Meu senhor, não faça isso comigo... Tenho mulher e filhos pra cuidar!”, de seis a sete taxistas do centro do Rio de Janeiro se recusaram a nos levar – eu e o fotógrafo Carlos Ruggi – ao Inferno Colorido, como era chamado um pequeno pedaço da imensa Favela da Maré, que se espalha ao longo do canal marítimo aos fundos da Ilha do Governador.
Já estávamos quase desistindo quando um deles, depois de saber que éramos jornalistas, resolveu correr o risco. Quando chegamos ao destino, mostrou-se nervoso, tenso... Pedíamos que ele parasse num determinado ponto, mas ele ia parar uma ou duas quadras à frente... Um pé no saco...
De repente vimos um táxi parado do lado de um pequeno prédio... Desci, fui-me informar... O táxi era do presidente da Associação dos Moradores da Favela da Maré... Propus dispensar o meu táxi para que ele passasse o dia conosco nos levando aos pontos desejados... Topou com um belo sorriso...
GRANDE "HONRA"
Posso dizer, portanto, que tive a “honra” de conhecer o Inferno Colorido por dentro, privilégio que era dado a pouquíssimas pessoas do “mundo externo”... Seu nome, se a memória não me falha, era Olavo de Souza, um condutor prestativo e esclarecido...
Era 1986, o ano da extinção do BNH pelo ministro do Desenvolvimento Ubano e Meio Ambiente, o paranaense Deni Lineu Schuwartz, e eu arrematava uma reportagem sobre desvios no projeto de reurbanização da Favela da Maré, financiado e executado pelo banco...
Não existiria, portanto, um condutor melhor para nos apresentar aquele mundo tenebroso que Olavo... Enquanto dirigia, contava:
- Isto aqui tudo que vocês estão vendo foi resultado da realocação das famílias que moravam em palafitas fincadas no canal...
- Por que cada casa parece ter sido pintada com cores diferentes?
Olavo deu uma gostosa risada e contou:
- Depois de construir essas casinhas, o BNH as entregou aos moradores sem pintura... Algum maluco lá de dentro resolveu exigir cores apropriadas para não causar a chamada monotonia da paisagem, típica dos conjuntos habitacionais populares... Os compradores encararam a exigência como uma ofensa e foram reclamar com o ministro Mário Andreazza (do Interior) numa vez que esteve aqui para entregar um lote das casas... Andreazza liberou geral e os moradores, de pirraça, resolveram pintar cada casa de cores diferentes... Foi assim que nasceu o “Inferno Colorido”...
CIEPS ABANDONADOS
Passamos o dia vistoriando o imenso conjunto habitacional e vimos coisas realmente assustadoras: dois dos Cieps construídos por Leonel Brizola haviam sido inaugurados e abandonados porque não havia professor com coragem suficiente pra trabalhar neles... Ambos já haviam virado pontos de desova dos cadáveres que o narcotráfico não parava de produzir...
Paramos e descemos do carro sobre uma ponte que – informava Olavo – já era obra da futura Linha Vermelha... Passava muita gente a pé pela ponte e a marca de quase todas elas era o rancor estampado no rosto com olhares que pareciam nos fuzilar... Eu mesmo sugeri sairmos logo dali... Das poucas vezes na vida que eu temi pela minha segurança e das pessoas que me acompanhavam...
Não eram ainda quatro horas da tarde quando Olavo resolveu encerrar a corrida e o fez com um argumento irrecorrível: “A partir deste horário, eu mesmo não gosto de circular por aí... Eu também tenho mulher e filhos pra criar!”
VAMOS AGORA A MUZEMA
Chama-se Muzema a encosta num dos morros do Rio de Janeiro onde, na primeira quinzena de abril deste 2019, após chuva intensa, dois prédios desabaram, matando e ferindo gravemente mais de 20 pessoas.
Na mesma encosta, outros três prédios estão interditados por ameaça de desabamento...
A quase dez dias do desastre, a polícia ainda não conhece os responsáveis pela construção e nem pela administração dos prédios que pertencem à Milícia e a milicianos que já decretaram aos moradores e vizinhos: “Quem revelar o que não deve, morre!”
Na verdade, o Rio de Janeiro é uma cidade que viveu nos últimos 40 anos - ou talvez mais - um festival de negligência, omissão, descalabro, que a foi transformando de cidade maravilhosa numa gigantesca Muzema ou num gigantesco Inferno Colorido, um território ocupado por milicianos, narcotraficantes, corruptos, corruptores e uma classe política, quase sem exceções, cúmplice e incentivadora da esbórnia geral....
No Rio de Sérgio Cabral, Garotinho e Pezão nem a Igreja Católica ficou de fora da Lava Jato: Wagner Augusto Portugal, ex-padre e ex-braço direito do cardeal-arcebispo, dom Orani Tempesta, em delação premiada denunciou o arcebispado em desvios de verbas da Saúde que totalizaram nada menos de 52 milhões de reais. Wagner era tão íntimo do cardeal que o chamava de você...
E não seria impróprio dizer que a cidade tem como símbolos de seu empresariado homens impolutos como Nelson Tanure, Sergio Naya (por sorte, já falecido), Marco Antônio de Luca, Eike Batista, Fernando Cavendish, Carlos Arthur Nuzman, Leonardo Gryner, etc. etc. ...
Não, o Rio não podia mesmo dar certo....
Inferno Colorido - Rio de Janeiro
Favela da Maré - Rio de Janeiro
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