14/10/2014

Cópia mal feita de nós mesmos

       Temos esperado com ansiedade, aqui em casa, que os médicos do Lucy Montoro marquem a data da minha terceira internação. Lá dentro estará à minha espera uma série de exercícios físicos, instrumentados, coordenados, intensivos, que  serão aplicados com o propósito de me levar a voltar a ser uma cópia a mais parecida possível daquilo que já fui. Este é, sem tirar nem por, o objetivo da maioria das terapias que o Instituto Lucy Montoro e outras instituições de ponta têm para oferecer às dezenas de pessoas que as procuram. É ao mesmo tempo cruel e alentador.
      Tomemos como exemplo meu braço direito, cujos movimentos foram embora espantados pelo AVC que me atingiu no final de julho de 2013. Já se passou mais de um ano, foram meses de terapia ocupacional, incluindo várias sessões na frente de uma tela de computador (excelência em matéria de robótica aplicada  à reabilitação), tudo para trazer-me os movimentos de volta e o que eu tenho hoje é uma cópia mal produzida do que esse meu braço fazia nos tempos da normalidade. Ainda não consigo levantar com ele e levar à boca uma xícara grande carregada de leite e café.
      Estou sendo ingrato com os terapeutas: quando entrei, pela primeira vez, no Lucy Montoro, não conseguia levar nada à boca, nada, nem uma xícara grande, nem pequena, meu braço gostava de ficar colado à barriga e, no começo, nem a mão eu conseguia abrir. Minha evolução de lá para cá foi extraordinária. A cada dia que passa dependo menos da cuidadora, minha mulher, ou do cuidador, um dos meus quatro filhos.
       Voltar ao que eu era antes ? Impossível, o AVC veio para deixar recordações para o resto da minha vida. Treine, treine e treine, recomendam os terapeutas. É desagradável, muitas vezes dolorido, mas o caminho é só este - mexer com músculos e nervos até que o cérebro acorde e reassuma seu nobre papel de comandar os membros superiores e inferiores.
       Meu AVC foi raro, dizem os médicos fisiatras. Normalmente, eles, os AVCs, paralisam os membros do lado esquerdo; no meu caso, a paralisia atingiu o lado direito. Quando se começa com a fisioterapia, o normal é voltarem o pé e a perna paralisados; no meu caso, a volta se deu pela mão e braço. Ainda não sei o que isso significa na prática, mas não esmoreci e espero não esmorecer até o fim da jornada, que é longa.
       Nas terapias de reabilitação, os avanços são lentíssimos. Na minha primeira internação no Lucy- fevereiro a março de 2014 - eu não fazia nem 30 segundos de “aviãozinho”. Levei seis meses de exercícios diários, persistentes, para conseguir fazer hoje dois minutos ou pouco mais. Creio que você, caro leitor, não sabe o que é aviãozinho, pois aprenda o que é fazendo junto comigo: abra os dois braços, bem na horizontal, e trate de sustentá-los assim no maior tempo que você conseguir; isto é o aviãozinho, uma santa terapia de reabilitação do braço, segundo Amanda , terapeuta ocupacional do Lucy.
       Na minha segunda internação, o braço caminhou celeremente rumo à reabilitação e a perna ficou para trás. Tive uma complicação após a infiltração de fenol na perna direita, de modo que mais da metade das sessões de fisioterapia foi dedicada a diminuir a sensibilidade. Tive um começo intensivo, abortado pelo problema que senti. “É raro, mas acontece”, explicou-me o doutor Ricardo, fisiatra. A meta de me fazerem andar foi adiada, objetivo da terceira internação, imagino.
       Uma coisa eu já pressinto: voltar a andar, no meu caso, será com ajuda de algum instrumento, andador, bengala, qualquer coisa do gênero, o que para mim já será motivo de grande felicidade. Só os que tiveram ao menos um dos membros inferiores paralisados serão capazes de imaginar a angústia de um homem preso à cama e que só consegue desprender-se dela com ajuda de alguém.
           - Benzoca! Benzoca! - são meus gritos ecoando pela casa, chamando minha mulher, Suzana, pelo jeito carinhoso que eu a tratava quando nos conhecemos há mais de quarenta anos atrás. Slap, slap, slap... Ainda na cama ouço o barulho do chinelo que parece trazê-la até mim. Ela chega sempre com disposição, flexiona meu pé direito umas trinta vezes, depois a perna direita umas vinte vezes.  Em seguida, dou-lhe as duas mãos, ela me puxa com uma força, força do amor, presumo, que parece inesgotável.  Assim me embarca na cadeira de rodas. Pronto, estou em condições de começar o meu dia.
       Tomo meu café da manhã que já está na mesa, se não estiver chovendo eu mesmo conduzo a cadeira a  um pátio ao lado da cozinha e vou ler  meu jornal e tomar meia ou uma hora de sol. Em seguida vou para a sala onde está à minha espera um computador conectado à Internet.
       Por tudo isso-e muito mais-, eu aconselho amigos e leitores: quem não tem sua Benzoca trate logo de arranjar!  



3 comentários:

  1. Pio, essa perseverança é tudo!.....cada relato seu que leio fico mais animado com sua recuperação!....em frente e avante, já diria o super-heroi!

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  2. Pio, quem escreveu a mensagem anterior fui eu, Bocão.......reparei que meu nome não apareceu.

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  3. Obrigado, Bocão. A propósito, você já arranjou a sua Benzoca ?

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